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O sublime e o belo de Burke

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Foto: Biblioteca da Universidade de Sevilha

A ideia de que o sublime nos comove mais profundamente do que o belo é uma ideia-chave reivindicada por Edmund Burke em Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo . Burke assume que tanto o belo quanto o sublime desencadeiam paixões nos seres humanos, mas se distinguem por seus efeitos; objetos bonitos provocam prazer, enquanto objetos sublimes provocam dor. Entre a nossa experiência de dor e prazer reside o estado de indiferença. [1] Neste estado contemplativo não experimentamos emoções ou sentimentos fortes. Ler isso pode nos dar uma pausa. Burke quis dizer apatia quando usou a palavra indiferença?

Burke escreve que os humanos são guiados por dois impulsos básicos: o impulso da sociedade – da perspectiva de hoje, uma espécie de necessidade de conexão social – e o impulso da autopreservação. O impulso da sociedade é preenchido pelas paixões do amor e do afeto, que são evocadas pelo belo. Para Burke, o carinho que se sente pelas outras pessoas é prazeroso. Este estado de prazer está livre de qualquer reflexão. De acordo com Burke, o belo não é uma criação da nossa razão porque não tem nenhuma utilidade palpável além de nos atrair para um estado de sentimentalismo. Essa ideia é transportada na crítica de arte, que evita o sentimentalismo como algo superficial e não contemplativo. [2]

Os critérios de Burke para julgar coisas bonitas são baseados em qualidades sensoriais: pequeno, suave, delicado, curvilíneo, leve, etc. são “qualidades de beleza”, [3] então o belo é uma propriedade consequencial, ou seja, uma propriedade que contém um pressuposto complexo de propriedades atraentes. [4]   Quando somos colocados em estado de prazer pelo belo, nosso corpo afrouxa. O prazer nos relaxa. O sublime tem o efeito físico oposto: no estado de dor evocado pela sublimidade, nossos nervos se contraem, tremem e nosso corpo fica sob grande tensão. [5]

Burke, portanto, considera o sublime como o oposto do belo, embora as suas qualidades sejam por vezes homogéneas. [6] As propriedades sensoriais das coisas sublimes são ásperas, angulares, escuras, grandes, etc. [7] Em sua definição do sublime, Burke nomeia quatro fontes principais: modificações de poder; objetos que afetam diretamente a ideia de perigo do sujeito; objetos que têm o mesmo efeito por razões mecânicas e infinitas. [8]

A causa inicial dessas fontes de paixão é o espanto, seguido por uma espécie de paralisia emocional, isto é, o terror, e com uma série de associações, segue-se a dor. Esta paixão só satisfaz o instinto de autopreservação enquanto o sujeito – ou a sua vida – não estiver em perigo direto. É necessária uma certa distância da realidade do objeto sublime para ser percebido adequadamente. É aqui que a arte – especialmente a literatura e o drama – são particularmente adequadas para satisfazer o instinto de autopreservação evocado pelo sublime. Porque provoca medo, horror e tremor sem ameaçar diretamente o bem-estar físico de quem vê. Em estados que foram desencadeados pelo sublime, as pessoas são lembradas da mortalidade, seguidas por uma sensação intensificada de estarem vivas. 

De acordo com Terry Eagleton, a capacidade de distinguir entre o sublime e o belo “permite que os seres humanos exerçam a intersubjetividade” e “estabeleçam uma comunidade de sujeitos sensíveis, ligados por uma rápida noção das nossas capacidades partilhadas”. [9] A distinção de Burke entre o belo e o sublime tem ramificações políticas que são relevantes para os nossos tempos. Ambos os conceitos apontam para o papel do afeto e da emoção políticos na política contemporânea; seja a paixão socialmente conectiva do sentimental ou o medo e aversão que acompanham a demonologia política. O nosso passado recente ensinou-nos a rejeitar mensagens políticas que visam os nossos piores medos e paixões (o sublime). Mas o que se pode dizer sobre o valor do belo?

 A reivindicação de uma experiência sensorial universal da arte, a suposição do belo de Burke, foi mais palpável no período globalizado pós-Segunda Guerra Mundial, defendido por uma série de movimentos modernistas, todos tentando criar arte que pudesse ser apreciada, pelo menos formal e sensorialmente. , num contexto internacional. Talvez mal informados sobre os aspectos socialmente conectivos do belo, os críticos enfatizaram a sublimidade do projeto modernista. No entanto, a magnanimidade deste período da história da arte promove a suposição de que o julgamento estético, bem como o envolvimento político, devem evitar emoções fortes, ou seja, o sublime e não o belo. Isto torna o tratado de Burke sobre a beleza especialmente ressonante, pois parece ser a categoria crítica que pode manter unida a nossa atual sociedade hiperinformada, mas politicamente polarizada. Uma invocação crítica da beleza como qualidade estética poderia ajudar a reconduzir uma sociedade profundamente dividida a uma cultura política mais saudável.


[1] Edmund Burke, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo , Oxford University Press (1990), parte I, Seção V.

[2] Susan Sontag, por exemplo, defenderia isso em Contra a Interpretação.

[3]   Edmund Burke, Uma investigação filosófica sobre as origens de nossas ideias sobre o belo e o sublime (1775), Parte III, Seção XVIII.

[4] Adam Phillips, “Introdução”, em Edmund Burke, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo , Oxford University Press (1990). Ibidem, Parte II, Seção IV.

[5] Ibidem, Parte IV, Seção III.

[6] Ibidem, Parte III, Seção XXVII

[7] Tal como acontece com o belo, deve-se acrescentar aqui que Burke não diz que todas as coisas que são lisas ou ásperas, pequenas ou grandes, etc., devem, portanto, necessariamente ser belas ou sublimes. O seu objetivo é deixar claro que as coisas grandes, ásperas,… não podem ser belas ou lisas, pequenas,… não sublimes.

[8] O infinito não precisa necessariamente ser infinito aqui, no entanto, o objeto também pode ser tão grande que não se consegue perceber o fim, ou um som pode se repetir com tanta frequência que o ouvido presume que é infinito.

[9] Ver Terry Eagleton, Ideology of the Aesthetic, (Oxford: Blackwell Publishers, 1990), 75. O parágrafo referia-se especificamente a Kant, mas seus comentários também podem ser úteis para examinar Burke.


Geronimo Cristobal é doutorando em História da Arte e Arqueologia na Cornell University

Fonte: Geronimo Cristobal

Viva o Capital!

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Foto: Mathieu Stern/Unsplash

Certas expressões usadas pelo povo são, muitas vezes, inteiramente equivocadas.  Assim, atribuem-se a capitães de indústria e a grandes empresários de nossos dias epítetos como “o rei do chocolate”, “o rei do algodão” ou “o rei do automóvel”.  Ao usar essas expressões, o povo demonstra não ver praticamente nenhuma diferença entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de outrora.  Mas, na realidade, a diferença é enorme, pois um rei do chocolate absolutamente não rege, ele serve.  Não reina sobre um território conquistado, independente do mercado, independente de seus compradores.  O rei do chocolate — ou do aço, ou do automóvel, ou qualquer outro rei da indústria contemporânea — depende da indústria que administra e dos clientes a quem presta serviços.  Esse “rei” precisa se conservar nas boas graças dos seus súditos, os consumidores: perderá seu “reino” assim que já não tiver condições de prestar aos seus clientes um serviço melhor e de mais baixo custo que o oferecido por seus concorrentes.

Duzentos anos atrás, antes do advento do capitalismo, o status social de um homem permanecia inalterado do princípio ao fim de sua existência: era herdado dos seus ancestrais e nunca mudava.  Se nascesse pobre, pobre seria para sempre; se rico — lorde ou duque –, manteria seu ducado, e a propriedade que o acompanhava, pelo resto dos seus dias. 

No tocante à manufatura, as primitivas indústrias de beneficiamento da época existiam quase exclusivamente em proveito dos ricos.  A grande maioria do povo (90% ou mais da população europeia) trabalhava na terra e não tinha contato com as indústrias de beneficiamento, voltadas para a cidade.  Esse rígido sistema da sociedade feudal imperou, por muitos séculos, nas mais desenvolvidas regiões da Europa.

Contudo, a população rural se expandiu e passou a haver um excesso de gente no campo.  Os membros dessa população excedente, sem terras herdadas ou bens, careciam de ocupação.  Também não lhes era possível trabalhar nas indústrias de beneficiamento, cujo acesso lhes era vedado pelos reis das cidades.  O número desses “párias” crescia incessantemente, sem que todavia ninguém soubesse o que fazer com eles.  Eram, no pleno sentido da palavra, “proletários”, e ao governo só restava interná-los em asilos ou casas de correção.  Em algumas regiões da Europa, sobretudo nos Países Baixos e na Inglaterra, essa população tornou-se tão numerosa que, no século XVIII, constituía uma verdadeira ameaça à preservação do sistema social vigente. 

Hoje, ao discutir questões análogas em lugares como a Índia ou outros países em desenvolvimento, não devemos esquecer que, na Inglaterra do século XVIII, as condições eram muito piores.  Naquele tempo, a Inglaterra tinha uma população de seis ou sete milhões de habitantes, dos quais mais de um milhão — provavelmente dois — não passavam de indigentes a quem o sistema social em vigor nada proporcionava.  As medidas a tomar com relação a esses deserdados constituíam um dos maiores problemas da Inglaterra. 

Outro sério problema era a falta de matérias-primas.  Os ingleses eram obrigados a enfrentar a seguinte questão: que faremos, no futuro, quando nossas florestas já não nos derem a madeira de que necessitamos para nossas indústrias e para aquecer nossas casas? Para as classes governantes, era uma situação desesperadora.  Os estadistas não sabiam o que fazer e as autoridades em geral não tinham qualquer ideia sobre como melhorar as condições.

Foi dessa grave situação social que emergiram os começos do capitalismo moderno.  Dentre aqueles párias, aqueles miseráveis, surgiram pessoas que tentaram organizar grupos para estabelecer pequenos negócios, capazes de produzir alguma coisa.  Foi uma inovação.  Esses inovadores não produziam artigos caros, acessíveis apenas às classes mais altas: produziam bens mais baratos, que pudessem satisfazer as necessidades de todos.  E foi essa a origem do capitalismo tal como hoje funciona.  Foi o começo da produção em massa — princípio básico da indústria capitalista.  Enquanto as antigas indústrias de beneficiamento funcionavam a serviço da gente abastada das cidades, existindo quase que exclusivamente para corresponder às demandas dessas classes privilegiadas, as novas indústrias capitalistas começaram a produzir artigos acessíveis a toda a população.  Era a produção em massa, para satisfazer às necessidades das massas.

Este é o principio fundamental do capitalismo tal como existe hoje em todos os países onde há um sistema de produção em massa extremamente desenvolvido: as empresas de grande porte, alvo dos mais fanáticos ataques desfechados pelos pretensos esquerdistas, produzem quase exclusivamente para suprir a carência das massas.  As empresas dedicadas à fabricação de artigos de luxo, para uso apenas dos abastados, jamais têm condições de alcançar a magnitude das grandes empresas.  E, hoje, os empregados das grandes fábricas são, eles próprios, os maiores  consumidores dos produtos que nelas se fabricam.  Esta é a diferença básica entre os princípios capitalistas de produção e os princípios feudalistas de épocas anteriores.

Quando se pressupõe ou se afirma a existência de uma diferença entre os produtores e os consumidores dos produtos da grande empresa, incorre-se em grave erro.  Nas grandes lojas dos Estados Unidos, ouvimos o slogan: “O cliente tem sempre razão.” E esse cliente é o mesmo homem que produz, na fábrica, os artigos à venda naqueles estabelecimentos.  Os que pensam que a grande empresa detém um enorme poder também se equivocam, uma vez que a empresa de grande porte é inteiramente dependente da preferência dos que lhes compram os produtos; a mais poderosa empresa perderia seu poder e sua influência se perdesse seus clientes.

Há cinquenta ou sessenta anos, era voz corrente em quase todos os países capitalistas que as companhias de estradas de ferro eram por demais grandes e poderosas: sendo monopolistas, tornavam impossível a concorrência.  Alegava-se que, na área dos transportes, o capitalismo já havia atingido um estágio no qual se destruira a si mesmo, pois que eliminara a concorrência.  O que se descurava era o fato de que o poder das ferrovias dependia de sua capacidade de oferecer à população um meio de transporte melhor que qualquer outro.  Evidentemente teria sido absurdo concorrer com uma dessas grandes estradas de ferro, através da implantação de uma nova ferrovia paralela à anterior, porquanto a primeira era suficiente para atender às necessidades do momento.  Mas outros concorrentes não tardaram a aparecer.  A livre concorrência não significa que se possa prosperar pela simples imitação ou cópia exata do que já foi feito por alguém.  A liberdade de imprensa não significa o direito de copiar o que outra pessoa escreveu, e assim alcançar o sucesso a que o verdadeiro autor fez jus por suas obras.  Significa o direito de escrever outra coisa.  A liberdade de concorrência no tocante às ferrovias, por exemplo, significa liberdade para inventar alguma coisa, para fazer alguma coisa que desafie as ferrovias já existentes e as coloque em situação muito precária de competitividade.

Nos Estados Unidos, a concorrência que se estabeleceu através dos ônibus, automóveis, caminhões e aviões impôs às estradas de ferro grandes perdas e uma derrota quase absoluta no que diz respeito ao transporte de passageiros.

O desenvolvimento do capitalismo consiste em que cada homem tem o direito de servir melhor e/ou mais barato o seu cliente.  E, num tempo relativamente curto, esse método, esse princípio, transformou a face do mundo, possibilitando um crescimento sem precedentes da população mundial. 

Na Inglaterra do século XVIII, o território só podia dar sustento a seis milhões de pessoas, num baixíssimo padrão de vida.  Hoje, mais de cinquenta milhões de pessoas aí desfrutam de um padrão de vida que chega a ser superior ao que desfrutavam os ricos no século XVIII.  E o padrão de vida na Inglaterra de hoje seria provavelmente mais alto ainda, não tivessem os ingleses dissipado boa parte de sua energia no que, sob diversos pontos de vista, não foram mais que “aventuras” políticas e militares evitáveis.

Estes são os fatos acerca do capitalismo.  Assim, se um inglês — ou, no tocante a esta questão, qualquer homem de qualquer país do mundo — afirmar hoje aos amigos ser contrário ao capitalismo, há uma esplêndida contestação a lhe fazer: “Sabe que a população deste planeta é hoje dez vezes maior que nos períodos precedentes ao capitalismo? Sabe que todos os homens usufruem hoje um padrão de vida mais elevado que o de seus ancestrais antes do advento do capitalismo? E como você pode ter certeza de que, se não fosse o capitalismo, você estaria integrando a décima parte da população sobrevivente? Sua mera existência é uma prova do êxito do capitalismo, seja qual for o valor que você atribua à própria vida.”

Não obstante todos os seus benefícios, o capitalismo foi furiosamente atacado e criticado.  É preciso compreender a origem dessa aversão.  É fato que o ódio ao capitalismo nasceu não entre o povo, não entre os próprios trabalhadores, mas em meio à aristocracia fundiária — a pequena nobreza da Inglaterra e da Europa continental.  Culpavam o capitalismo por algo que não lhes era muito agradável: no início do século XIX, os salários mais altos pagos pelas indústrias aos seus trabalhadores forçaram a aristocracia agrária a pagar salários igualmente altos aos seus trabalhadores agrícolas.  A aristocracia atacava a indústria criticando o padrão de vida das massas trabalhadoras. 

Obviamente, do nosso ponto de vista, o padrão de vida dos trabalhadores era extremamente baixo.  Mas, se as condições de vida nos primórdios do capitalismo eram absolutamente escandalosas, não era porque as recém-criadas indústrias capitalistas estivessem prejudicando os trabalhadores: as pessoas contratadas pelas fábricas já subsistiam antes em condições praticamente subumanas.

A velha história, repetida centenas de vezes, de que as fábricas empregavam mulheres e crianças que, antes de trabalharem nessas fábricas, viviam em condições satisfatórias, é um dos maiores embustes da história.  As mães que trabalhavam nas fábricas não tinham o que cozinhar: não abandonavam seus lares e suas cozinhas para se dirigir às fábricas — corriam a elas porque não tinham cozinhas e, ainda que as tivessem, não tinham comida para nelas cozinharem.  E as crianças não provinham de um ambiente confortável: estavam famintas, estavam morrendo.  E todo o tão falado e indescritível horror do capitalismo primitivo pode ser refutado por uma única estatística: precisamente nesses anos de expansão do capitalismo na Inglaterra, no chamado período da Revolução Industrial inglesa, entre 1760 e 1830, a população do país dobrou, o que significa que centenas de milhares de crianças — que em outros tempos teriam morrido — sobreviveram e cresceram, tornando-se homens e mulheres.

Não há dúvida de que as condições gerais de vida em épocas anteriores eram muito insatisfatórias.  Foi o comércio capitalista que as melhorou.  Foram justamente aquelas primeiras fábricas que passaram a suprir, direta ou indiretamente, as necessidades de seus trabalhadores, através da exportação de manufaturados e da importação de alimentos e matérias-primas de outros países.  Mais uma vez, os primeiros historiadores do capitalismo falsearam – é difícil usar uma palavra mais branda — a história. 

Há uma anedota — provavelmente inventada — que se costuma contar a respeito de Benjamin Franklin: em visita a um cotonifício na Inglaterra, Benjamin Franklin ouviu do proprietário cheio de orgulho: “Veja, temos aqui tecidos de algodão para a Hungria.” Olhando à sua volta e constatando que os trabalhadores estavam em andrajos, Franklin perguntou: “E por que não produz também para os seus empregados?”

Mas as exportações de que falava o dono do cotonifício realmente significavam que ele de fato produzia para os próprios empregados, visto que a Inglaterra tinha de importar toda a sua matéria-prima.  Não possuía nenhum algodão, como também ocorria com a Europa continental.  A Inglaterra atravessava uma fase de escassez de alimentos: era necessária sua importação da Polônia, da Rússia, da Hungria.  Assim, as exportações — como as de tecidos — se constituíam no pagamento de importações de alimentos necessários à sobrevivência da população inglesa.  Muitos exemplos da história dessa época revelarão a atitude da pequena nobreza e da aristocracia com relação aos trabalhadores.  Quero citar apenas dois.  Um é o famoso sistema inglês do seed and land.  Por tal sistema, o governo inglês pagava a todos os trabalhadores que não chegavam a receber um salário mínimo (oficialmente fixado) a diferença entre o que recebiam e esse mínimo.  Isso poupava à aristocracia fundiária o dissabor de pagar salários mais altos.  A pequena nobreza continuaria pagando o tradicionalmente baixo salário agrícola, suplementado pelo governo.  Evitava-se, assim, que os trabalhadores abandonassem as atividades rurais em busca de emprego nas fábricas urbanas.

Oitenta anos depois, após a expansão do capitalismo da Inglaterra para a Europa continental, mais uma vez verificou-se a reação da aristocracia rural contra o novo sistema de produção.  Na Alemanha, os aristocratas prussianos — tendo perdido muitos trabalhadores para as indústrias capitalistas, que ofereciam melhor remuneração — cunharam uma expressão especial para designar o problema: “fuga do campo” — Landflucht.  Discutiu-se, então, no parlamento alemão, que tipo de medida se poderia tomar contra aquele mal –– e tratava-se indiscutivelmente de um mal, do ponto de vista da aristocracia rural.  O príncipe Bismarck, o famoso chanceler do Reich alemão, disse um dia num discurso: “Encontrei em Berlim um homem que havia trabalhado em minhas terras.  Perguntei-lhe: ‘Por que deixou minhas terras? Por que deixou o campo? Por que vive agora em Berlim?'”

E, segundo Bismarck, o homem respondeu: “Na aldeia não se tem, como aqui em Berlim, um Biergarten tão lindo, onde nos podemos sentar; tomar cerveja e ouvir música.” Esta é, sem dúvida, uma estória contada do ponto de vista do príncipe Bismarck, o empregador.  Não seria o ponto de vista de todos os seus empregados.  Estes acorriam à indústria porque ela lhes pagava salários mais altos e elevava seu padrão de vida a níveis sem precedentes.

Hoje, nos países capitalistas, há relativamente pouca diferença entre a vida básica das chamadas classes mais altas e a das mais baixas: ambas têm alimento, roupas e abrigo.  Mas no século XVIII, e nos que o precederam, o que distinguia o homem da classe média do da classe baixa era o fato de o primeiro ter sapatos, e o segundo, não.  Hoje, nos Estados Unidos, a diferença entre um rico e um pobre reduz-se muitas vezes à diferença entre um Cadillac e um Chevrolet.  O Chevrolet pode ser de segunda mão, mas presta a seu dono basicamente os mesmos serviços que o Cadillac poderia prestar, uma vez que também está apto a se deslocar de um local a outro.  Mais de 50% da população dos Estados Unidos vivem em casas e apartamentos próprios. 

As investidas contra o capitalismo — especialmente no que se refere aos padrões salariais mais altos — tiveram por origem a falsa suposição de que os salários são, em última análise, pagos por pessoas diferentes daquelas que trabalham nas fábricas.  Certamente, nada impede que economistas e estudantes de teorias econômicas tracem uma distinção entre trabalhador e consumidor.  Mas o fato é que todo consumidor tem de ganhar, de uma maneira ou de outra, o dinheiro que gasta, e a imensa maioria dos consumidores é constituída precisamente por aquelas mesmas pessoas que trabalham como empregados nas empresas produtoras dos bens que consomem.

No capitalismo, os padrões salariais não são estipulados por pessoas diferentes das que ganham os salários: são essas mesmas pessoas que os manipulam.  Não é a companhia cinematográfica de Hollywood que paga os salários de um astro das telas, quem os paga é o público que compra ingresso nas bilheterias dos cinemas.  E não é o empresário de uma luta de boxe que cobre as enormes exigências de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para a luta.  A partir da distinção entre empregado e empregador, traça-se, no plano da teoria econômica, uma distinção que não existe na vida real.  Nesta, empregador e empregado são, em última análise, uma só e a mesma pessoa.

Em muitos países há quem considere injusto que um homem obrigado a sustentar uma família numerosa receba o mesmo salário que outro, responsável apenas pela própria manutenção.  No entanto, o problema é não questionar se é ao empresário ou não que cabe assumir a responsabilidade pelo tamanho da família de um trabalhador.

A pergunta que deve ser feita neste caso é: você, como indivíduo, se disporia a pagar mais por alguma coisa, digamos, um pão, se for informado de que o homem que o fabricou tem seis filhos? Uma pessoa honesta por certo responderia negativamente, dizendo: “Em principio, sim.  Mas na prática tenderia a comprar o pão feito por um homem sem filho nenhum.” O fato é que o empregador a quem os compradores não pagam o suficiente para que ele possa pagar seus empregados se vê na impossibilidade de levar adiante seus negócios.

O “capitalismo” foi assim batizado não por um simpatizante do sistema, mas por alguém que o tinha na conta do pior de todos os sistemas históricos, da mais grave calamidade que jamais se abatera sobre a humanidade.  Esse homem foi Karl Marx.  Não há razão, contudo, para rejeitar a designação proposta por Marx, uma vez que ela indica claramente a origem dos grandes progressos sociais ocasionados pelo capitalismo.  Esses progressos são fruto da acumulação do capital; baseiam-se no fato de que as pessoas, por via de regra, não consomem tudo o que produzem e no fato de que elas poupam — e investem — parte desse montante.

Reina um grande equívoco em torno desse problema.  Ao longo destas seis palestras, terei oportunidade de abordar os principais mal-entendidos em voga, relacionados com a acumulação do capital, com o uso do capital e com os benefícios universais auferidos a partir desse uso.  Tratarei do capitalismo particularmente em minhas palestras dedicadas ao investimento externo e a esse problema extremamente crítico da política atual que é a inflação.  Todos sabem, é claro, que a inflação não existe só neste país.  Constitui hoje um problema em todas as partes do mundo.  O que muitas vezes não se compreende a respeito do capitalismo é o seguinte: poupança significa benefícios para todos os que desejam produzir ou receber salários. 

Quando alguém acumula certa quantidade de dinheiro — mil dólares, digamos — e confia esses dólares, em vez de gastá-los, a uma empresa de poupança ou a uma companhia de seguros, transfere esse dinheiro para um empresário, um homem de negócios, o que vai permitir que esse empresário possa expandir suas atividades e investir num projeto, que na véspera ainda era inviável, por falta do capital necessário.  Que fará então o empresário com o capital recém-obtido? Certamente a primeira coisa que fará, o primeiro uso que dará a esse capital suplementar será a contratação de trabalhadores e a compra de matérias-primas — o que promoverá, por sua vez, o surgimento de uma demanda adicional de trabalhadores e matérias-primas, bem como uma tendência à elevação dos salários e dos preços dessas matérias-primas.  Muito antes que o poupador ou o empresário  tenham obtido algum lucro em tudo isso, o trabalhador desempregado, o produtor de matérias-primas, o agricultor e o assalariado já estarão participando dos benefícios das poupanças adicionais.

O que o empresário virá ou não a ganhar com o projeto depende das condições futuras do mercado e de seu talento para prevê-las corretamente.  Mas os trabalhadores, assim como os produtores de matéria-prima, auferem as vantagens de imediato.  Muito se falou, trinta ou quarenta anos atrás, sobre a “política salarial” — como a denominavam — de Henry Ford.  Uma das maiores façanhas do senhor Ford consistia em pagar salários mais altos que os oferecidos pelas demais industrias ou fábricas.  Sua política salarial foi descrita como uma “invenção”.  Não se pode, no entanto, dizer que essa nova política “inventada” seja simplesmente um fruto da liberalidade do senhor Ford.  Um novo ramo industrial — ou uma nova fábrica num ramo já existente — precisa atrair trabalhadores de outros empregos, de outras regiões do país e até de outros países.  E não há outra maneira de fazê-lo senão através do pagamento de salários mais altos aos trabalhadores.  Foi o que ocorreu nos primórdios do capitalismo, e é o que ocorre até hoje.

Na Grã-Bretanha, quando os fabricantes começaram a produzir artigos de algodão, eles passaram a pagar aos seus trabalhadores mais do que estes ganhavam antes.  Ê verdade que grande porcentagem desses novos trabalhadores jamais ganhara coisa alguma antes.  Estavam, então, dispostos a aceitar qualquer quantia que lhes fosse oferecida.  Mas, pouco tempo depois, com a crescente acumulação do capital e a implantação de um número cada vez maior de novas empresas, os salários se elevaram, e como consequência houve aquele aumento sem precedentes da população inglesa, ao qual já me referi.  A reiterada caracterização depreciativa do capitalismo como um sistema destinado a tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres é equivocada do começo ao fim.  A tese de Marx concernente ao advento do capitalismo baseou-se no pressuposto de  que os trabalhadores estavam ficando mais pobres, de que o povo estava ficando mais miserável, o que finalmente redundaria na concentração de toda a riqueza de um país em umas poucas mãos, ou mesmo nas de um homem só.  Como consequência, as massas trabalhadoras empobrecidas se rebelariam e expropriariam os bens dos opulentos proprietários. 

Segundo essa doutrina de Marx, é impossível, no sistema capitalista, qualquer oportunidade, qualquer possibilidade de melhoria das condições dos trabalhadores.  Em 1865, falando perante a Associação Internacional dos Trabalhadores, na Inglaterra, Marx afirmou que a crença de que os sindicatos poderiam promover melhores condições para a população trabalhadora era “absolutamente errônea”.  Qualificou a política sindical voltada para a reivindicação de melhores salários e menor número de horas de trabalho de conservadora –– era este, evidentemente, o termo mais desabonador a que Marx podia recorrer.  Sugeriu que os sindicatos adotassem uma nova meta revolucionária: a “completa abolição do sistema de salários”, e a substituição do sistema de propriedade privada pelo “socialismo” — a posse dos meios de produção pelo governo.

Se consideramos a história do mundo — e em especial a história da Inglaterra a partir de 1865 — verificaremos que Marx estava errado sob todos os aspectos.  Não há um só país capitalista em que as condições do povo não tenham melhorado de maneira inédita.  Todos esses progressos ocorridos nos últimos oitenta ou noventa anos produziram-se a despeito dos prognósticos de Karl Marx: os socialistas de orientação marxista acreditavam que as condições dos trabalhadores jamais poderiam melhorar.  Adotavam uma falsa teoria, a famosa “lei de ferro dos salários”.  Segundo esta lei, no capitalismo, os salários de um trabalhador não excederiam a soma que lhe fosse estritamente necessária para manter-se vivo a serviço da empresa.

Os marxistas enunciaram sua teoria da seguinte forma: se os padrões salariais dos trabalhadores sobem, com a elevação dos salários, a um nível superior ao necessário para a subsistência, eles terão mais filhos.  Esses filhos, ao ingressarem na força de trabalho, engrossarão o número de trabalhadores até o ponto em que os padrões salariais cairão, rebaixando novamente os salários dos trabalhadores a um nível mínimo necessário para a subsistência — àquele nível mínimo de sustento, apenas suficiente para impedir a extinção da população trabalhadora.

Mas essa ideia de Marx, e de muitos outros socialistas, envolve um conceito de trabalhador idêntico ao adotado — justificadamente — pelos biólogos que estudam a vida dos animais.  Dos camundongos, por exemplo.  Se colocarmos maior quantidade de alimento à disposição de organismos animais, ou de micróbios, maior número deles sobreviverá.  Se a restringirmos, restringiremos o número dos sobreviventes.  Mas com o homem é diferente.  Mesmo o trabalhador — ainda que os marxistas não o admitam — tem carências humanas outras que as de alimento e de reprodução de sua espécie.  Um aumento dos salários reais resulta não só num aumento da população; resulta também, e antes de tudo, numa melhoria do padrão de vida média.  É por isso que temos hoje, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, um padrão de vida superior ao das nações em desenvolvimento, às da África, por exemplo.  Devemos compreender, contudo, que esse padrão de vida mais elevado fundamenta-se na disponibilidade de capital.  Isso explica a diferença entre as condições reinantes nos Estados Unidos e as que encontramos na Índia.  Neste país foram introduzidos — ao menos em certa medida — modernos métodos de combate a doenças contagiosas, cujo efeito foi um aumento inaudito da população.  No entanto, como esse crescimento populacional não foi acompanhado de um aumento correspondente do montante de capital investido no país, o resultado foi um agravamento da miséria.  Quanto mais se eleva o capital investido por indivíduo, mais próspero se torna o país. 

Mas é preciso lembrar que nas políticas econômicas não ocorrem milagres.  Todos leram artigos de jornal e discursos sobre o chamado milagre econômico alemão — a recuperação da Alemanha depois de sua derrota e destruição na Segunda Guerra Mundial.  Mas não houve milagre.  Houve tão somente a aplicação dos princípios da economia do livre mercado, dos métodos do capitalismo, embora essa aplicação não tenha sido completa em todos os pontos.  Todo país pode experimentar o mesmo “milagre” de recuperação econômica, embora eu deva insistir em que esta não é fruto de milagre: é fruto da adoção de políticas econômicas sólidas, pois que é delas que resulta.


Esse texto é o primeiro capítulo do livro As Seis Lições, e foi traduzido por Maria Luiza Borges.

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.

Como a Internet transforma o indivíduo em uma conspiração de um só

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Quanto mais fácil se torna a produção de informação, mais difícil se torna o seu consumo – e mais difícil temos de trabalhar para separar o espúrio do significativo.

Os humanos são máquinas criadoras de significado, buscando ordem no caos. Nossas capacidades de reconhecimento de padrões são um fator determinante na definição de inteligência. Mas vivemos agora num cenário digital distópico construído especificamente para minar estas capacidades, treinando-nos para confundir padrões planeados com coincidências convenientes e até significativas.

Você sabe o que fazer: envie um e-mail para um colega sobre o mau tempo e comece a receber anúncios em banners de voos baratos para a Córsega (ouvi dizer que é bom); no Google, “licença de ordenação” ou “horário da prefeitura” e observe sua caixa de entrada se encher de descontos em anéis e berços. Para aqueles de nós que crescemos durante a ascensão do capitalismo de vigilância, a nossa experiência online foi definida pelo esforço de separar a coincidência da causa e efeito. Hoje entendemos, se não aceitamos, que o hiperconsumo de informações on-line tem o custo de sermos hiperconsumidos, sangrados pelas empresas de tecnologia pelos dados que nossas leituras secretam: você clica e as Cinco Grandes coletam uma amostra de suas “preferências” – para explorar.

O custo real desta construção recursiva da realidade a partir das coisas efêmeras das nossas preferências é que ela adapta um mundo isolado para cada indivíduo.

E quando você vive no centro de um mundo privado, com engenharia reversa a partir de seu próprio histórico de pesquisa, você começa a perceber padrões que outros não conseguem. Acredite em mim quando digo que sei como é saber que você é o único que vê a conexão – um padrão de injustiça, digamos – e que você é completamente louco por perceber qualquer coisa. Fabricar significado a partir da mera coincidência é a essência da paranóia, a porta de entrada para a construção do mundo das suas próprias conspirações próprias – ou então para uma epifania que lhe permite ver o mundo como ele realmente é.

Quero falar sobre essa epifania, sobre retomar o controle do nosso mundo atomizado e pré-conspiratório.

O psicólogo alemão Klaus Conrad chamou esse estado premonitório de apofenia (ou apophenia), definido como perceber padrões que na verdade não existem e encaminhá-los de volta a uma autoridade invisível que deve estar controlando. É uma teoria que ele desenvolveu como oficial médico do exército especializado em traumatismos cranianos durante o Terceiro Reich. Hoje, é análogo ao pensamento da conspiração política.

Consideremos o caso nº 10: um soldado alemão num posto de gasolina recusa-se a servir uma patrulha que não possui a documentação adequada. Atribua seu comportamento ao infame ofício nazista, mas quando a patrulha retorna, com os papéis em mãos, o soldado ainda se recusa a obedecer às ordens. Seu reconhecimento de padrões acelerou e ele começou a ver cada detalhe — uma porta trancada, esses patrulheiros, papéis assinados ou não — como um teste. Sua desobediência paranoica o leva à ala psiquiátrica, onde Conrad o classifica como um dos 107 casos que revolucionam a compreensão da psicologia humana na esfera germânica.

Conrad tornou-se famoso por reconhecer esta emergência opressiva de padrões como um estado pré-psicótico que ele comparou ao medo de palco. Culmina numa falsa epifania: uma apofania não é um lampejo de compreensão da verdadeira natureza da realidade, mas uma experiência aha (literalmente: Aha-Erlebnis em alemão) que constitui o nascimento da ilusão. Todo o universo “voltou” e “se reorganizou” para girar em torno do indivíduo, realizando e corroborando suas suspeitas.

Shakespeare disse que o mundo inteiro é um palco. Mas neste caso é encenado especificamente para você, o público que também é a estrela

Para alguém obcecado pela patologia da conspiração, Conrad era bastante suscetível a pensamentos conspiratórios. Nascido na Alemanha e criado em Viena, a sua lealdade ao Partido Nazista precedeu o seu dever militar. Ele ingressou em 1940, quando suas pesquisas anteriores sobre epilepsia hereditária pareciam um material promissor para as monstruosas leis de esterilização nazistas. Talvez tenha sido oportunismo carreirista, talvez tenha sido ideológico. Ou talvez seja necessário um homem obcecado pela ilusão para reconhecer outro: Hitler foi um dos maiores teóricos da conspiração de todos os tempos.

Apenas as descobertas científicas de Conrad não são delirantes. Na verdade, ele acabou sendo um dos únicos cientistas nazistas a produzir ciência sem foguetes, tortura ou pentagramas. Os soldados traumatizados que ele tratou no campo de batalha revelaram-se bons dados, e as centenas de casos em que trabalhou permitiram-lhe elaborar as leis da psicologia da “Gestalt” (ou seja, ‘padrão’), uma escola de pensamento que defende o ser humano.

A mente capta num instante não apenas elementos individuais de um conjunto de informações, mas configurações ou padrões inteiros. Por exemplo, quando vemos barras de luz alternadas, elas parecem estar em movimento, mesmo que não estejam – nossos cérebros estão apenas lembrando padrões relacionados à percepção de movimento e aplicando-os a objetos estacionários.

Num estado apofênico, tudo é um padrão. E embora o modelo de palco de Conrad use a analogia de estrelar seu próprio show individual, o narcisismo de viver online hoje oferece muito mais. No Instagram você pode aplicar filtros no seu rosto, filtrar seguidores indesejados, construir uma imagem na qual você e seus colegas queiram acreditar – você está vivendo uma ilusão privada, em público, que o mundo reifica com curtidas. A coleta de dados com fins lucrativos literalmente “reorganizou” o mundo para girar em torno de você. Como você deseja – ou eles farão.

A verdadeira epifania, quero argumentar, é que é você quem puxa os cordelinhos. Iluminação é perceber que você tem mais arbítrio do que suas notificações push querem que você acredite.

Em um mundo apofênico e abrangido pela informação, onde você pode basicamente encontrar evidências de qualquer teoria que desejar, onde as pessoas habitam realidades on-line separadas, devemos nos concentrar na falsificabilidade (que pode ser testada) sobre a suportabilidade (que não pode). ​​​​​​​

É isso que o sociólogo judeu austríaco Karl Popper, refugiado do Holocausto na Nova Zelândia e mais tarde na Inglaterra, estabeleceu em sua teoria científica. Popper acreditava que as teorias da conspiração são exatamente o que alimentam um estado totalitário como a Alemanha de Hitler, brincando e reproduzindo a paranoia do público em relação ao outro. E os autoritários escapem impunes precisamente porque suas reivindicações pseudocientíficas, disfarçadas de pesquisa sólida, são projetadas para serem difíceis de provar serem “falsas” no calor do momento, quando os conjuntos de dados – sem mencionar um sentido das consequências históricas – são necessariamente incompletos.

Pelas luzes de Popper – e, eu argumentaria, pela intuição da decência humana básica – não devemos considerar essas teorias provisórias como “ciência”.

Popper é um dos favoritos em estudos da teoria da conspiração, mas quero trazer uma ideia adjacente dele que considero ser subestimada nesse contexto, que é de que a maioria das ações humanas tem consequências não intencionais. A publicidade instantânea deveria produzir consumidores informados; A Agência de Segurança Nacional deveria “nos” proteger de sermos explorados por “eles”. Esses planos deram terrivelmente errado. Mas uma vez que você acorda com a ideia de que o mundo foi modelado, intencional ou involuntariamente, de maneiras com as quais você não concorda, você pode começar a mudá -lo.

É de boa fé que os denunciantes em todo o mundo trazem essas contradições à atenção do público; Eles facilitam a epifania pública, lembrando-nos de que não estamos em quarentena em nossos “estágios” paranóicos particulares. Pensar em público, em conjunto, nos permite encenar um desempenho diferente. Nós nos tornamos mais parecidos com os teóricos sociais de Popper:

“O teórico da conspiração acreditará que as instituições podem ser entendidas completamente como resultado de um design consciente; E como coletivos, ele geralmente lhes atribui uma espécie de personalidade de grupo, tratando-os como agentes conspiradores, como se fossem um indivíduo. Ao contrário dessa visão, o teórico social deve reconhecer que a persistência de instituições e coletivos cria um problema a ser resolvido em termos de uma análise de ações sociais individuais e de suas conseqUências sociais não intencionais (e muitas vezes indesejadas), bem como as pretendidas”.

Talvez eu seja o iludido por encontrar motivos de otimismo nessa ideia – e não apenas porque isso me ela salva de deixar o ex-nazista Conrad ter a última palavra. O pensamento de Popper oferece uma escotilha de fuga de nossos mundos particulares e de volta à esfera pública. O teórico social é um pensador público, orientado para melhorar a sociedade; O teórico da conspiração é vítima de instituições que estão além de seu controle.


Edward Snowden é o denunciante americano por trás das revelações de 2013 sobre a vigilância global em massa e autor de “Permanent Record”, um best-seller internacional. Atualmente é presidente do conselho de administração da Fundação para a Liberdade de Imprensa.

Fonte: Continuing Ed

O artigo publicado é de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista  do Instituto O Pacificador.

Quando mentir se torna uma virtude, a civilização declina

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O famoso professor de psicologia social Jonathan Haidt tem pensado nos perigos de atestar algo em que não acredita. Mentir se tornou necessário para que Haidt mantenha sua posição profissional. 

Para outros, os riscos são ainda maiores; se não mentirem, podem perder o emprego. Nicole Levitt, por exemplo, foi obrigada por sua organização a concordar em estipular que “os brancos são racistas”. Os médicos foram ameaçados com a perda de credenciais profissionais ou de suas licenças se falassem publicamente sobre as suas divergências com a ortodoxia da vacina contra a COVID.

Haidt acredita que a verdade é o telos, a Estrela do Norte, das universidades. Já adicionar um segundo telos de justiça social é impossível. Haidt previu, anos atrás, que “o conflito entre a verdade e a justiça social provavelmente se tornaria incontrolável… As universidades que tentarem honrar ambas enfrentariam crescente incoerência e conflito interno”.

Recentemente, Haidt enfrentou um teste ao seu dever para com a verdade quando a sua “principal associação profissional – a Sociedade de Personalidade e Psicologia Social (SPSP)” estabeleceu uma política para os membros apresentarem as suas pesquisas mais recentes. Na convenção anual do SPSP, teriam de incluir uma declaração explicando “se e como esta submissão promove os objetivos de equidade, inclusão e antirracismo do SPSP”. 

Haidt escreve: “A maior parte do trabalho acadêmico não tem nada a ver com a diversidade, e parece que estas declarações obrigatórias forçam muitos acadêmicos a trair o seu dever quase fiduciário para com a verdade, distorcendo ou inventando de outra forma alguma ligação tênue com a diversidade”.

Essa nova forma de mandato parece uma escalada “ideológica”. Haidt nos pede para “observar que a palavra diversidade foi abandonada e substituída por antirracismo. Portanto, todo psicólogo que quiser se apresentar na convenção mais importante da nossa área deve agora dizer como seu trabalho promove o antirracismo.”

Para contextualizar, Haidt aponta que o livro de Ibram X. Kendi,  How to Be an Antiracist, apela à discriminação como remédio para o racismo. Kendi escreveu: O único remédio para a discriminação racista é a discriminação antirracista. O único remédio para a discriminação passada é a discriminação presente. A única solução para a discriminação presente é a discriminação futura.”

Haidt acredita que Marco Aurélio ofereceu “conselhos atemporais” quando escreveu em suas Meditações: “Nunca considere algo que lhe faz bem se isso o fizer trair a confiança ou perder o senso de vergonha, ou fizer você mostrar ódio, suspeita, má vontade, ou hipocrisia, ou um desejo de que as coisas sejam melhor feitas a portas fechadas.”

Em suma, a organização profissional de Haidt exige que ele e outros violem os seus princípios morais para permanecerem em boa posição na sua profissão. A academia se tornou um lugar onde diversas visões não mais podem coexistir pacificamente.

Haidt já tem o direcionamento. Potenciais novos professores têm de competir não apenas em credenciais acadêmicas, mas também em serem os mentirosos mais espertos; as suas candidaturas podem ser rejeitadas se o seu compromisso com a diversidade não for considerado suficientemente forte pelos “administradores ideológicos”.  

Chegamos ao ponto em que, para que os profissionais tenham sucesso, o engano e a mentira são traços de caráter necessários?

Sem dúvida, muitos estão mentindo para manter seus empregos e posições. Ao tentarem se adaptar às ideologias despertas de hoje, os mentirosos são considerados virtuosos. A história provavelmente não os verá tão bem.  

O Homem do Sistema

Em sua Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith explorou como os sentimentos morais se desenvolvem e como esse desenvolvimento depende das interações sociais. Uma sociedade virtuosa surge de escolhas individuais.   

A maioria de nós procura evitar a desaprovação dos outros e ajustamos o nosso comportamento para se adequar às normas. Está em nossa natureza inata, nas palavras de Smith, “respeitar os sentimentos e julgamentos de [nossos] irmãos; ficar mais ou menos satisfeitos quando aprovam [nossa] conduta”. Quando todos parecem aceitar a doutrina desperta, podemos nos sentir mais confortáveis ​​em seguir em frente do que em permanecer compartilhando nossas ideias. 

Smith tinha desprezo pelo que chamou de “homem do sistema”, que pretende refazer a sociedade de acordo com o seu plano mestre e as normas sociais, mesmo quando pode ser necessária “grande violência” para “aniquilar” a ordem social existente. Tal pessoa arrogante, escreveu Smith, “é capaz de ser muito sábia em sua própria presunção; e muitas vezes está tão apaixonado pela suposta beleza do seu próprio plano ideal de governo, que não pode sofrer o menor desvio de qualquer parte dele.” 

Smith explica que o aspirante a engenheiro social

parece imaginar que ele pode organizar os diferentes membros de uma grande sociedade com tanta facilidade como a mão organiza as diferentes peças num tabuleiro de xadrez. Ele não considera que, no grande tabuleiro de xadrez da sociedade humana, cada peça tenha um princípio de movimento próprio, totalmente diferente daquele que o legislador poderia decidir imprimir-lhe.

É claro que pode ser mais fácil ver os erros graves dos líderes políticos, mas as palavras de Smith aplicam-se também aos líderes organizacionais que ignoram as consequências da imposição da sua vontade aos outros.

Quando somos forçados a enganar para satisfazer as exigências do “homem do sistema”, todos sofremos. Verdade e honestidade constroem confiança. A confiabilidade é um alicerce da sociedade civil. Russell Roberts, em seu livro Como Adam Smith pode mudar sua vida, coloca isso da seguinte maneira: “Quando você pode confiar nas pessoas com quem lida – quando você não precisa temer que sua confiança seja explorada para o ganho de outra pessoa – a vida é mais adorável e a vida econômica é muito mais fácil.”

Imagine um mundo onde você não pode confiar na honestidade das pessoas que encontra. A vida comercial vacilaria e a vida social ficaria tensa. A sociedade civil definha quando a confiabilidade se desgasta.

As decisões que tomamos em nossas vidas diárias são os alicerces da sociedade. Seguir o programa e mentir pode ter consequências terríveis. Pode parecer haver benefícios pessoais em seguir o rebanho, mas quando o rebanho normaliza a mentira, os laços comerciais e sociais dos quais dependemos tornam-se desgastados.

Quando a mentira é normalizada

Visitei pela primeira vez o trabalho do jornalista chinês Yang Jisheng no meu ensaio Quando a família é abolida, as pessoas morrem de fome. O livro de Jisheng, Tombstone, fornece uma descrição gráfica da fome induzida pelo governo que matou 36 milhões de pessoas e das mentalidades que produziram a fome. Uma dessas mentalidades era um compromisso total da sociedade com a mentira, como uma ferramenta para promover a visão de sociedade do “homem do sistema”, o camarada Mao Tse Tung. Uma catástrofe foi o resultado da mentira normalizadora do Estado.

Jisheng era um adolescente que morava longe de sua casa rural. Ele aceitou de bom grado a propaganda maoísta que não conseguiu racionalizar as políticas comunistas e matou seu pai. Na época, Jishseng estava pronto para se sacrificar pelo “bem maior”: 

Lamentei profundamente a morte do meu pai, mas nunca pensei em culpar o governo. Não tive dúvidas quanto à propaganda do partido sobre as realizações do “Grande Salto em Frente” ou sobre as vantagens das comunas populares. Eu acreditava que o que estava acontecendo na minha aldeia natal era isolado e que a morte do meu pai era apenas a tragédia de uma família. Comparado com o advento da grande sociedade comunista, qual foi o pequeno infortúnio da minha família? O partido me ensinou a sacrificar a mim mesmo por um bem maior ao encontrar dificuldades, e eu fui completamente obediente. Mantive esse estado de espírito até a Revolução Cultural.

Jisheng explica como os comunistas pretendiam “projetar” a “alma humana”: 

O monopólio do governo sobre a informação deu-lhe o monopólio da verdade. Como centro do poder, o centro do partido era também o coração da verdade e da informação. Todos os órgãos de investigação em ciências sociais endossaram a validade do regime comunista; todos os grupos culturais e artísticos elogiaram o PCC (partido comunista chinês), enquanto os órgãos de notícias verificavam diariamente a sua sabedoria e poder. Da creche à universidade, a principal missão era inculcar uma visão de mundo comunista nas mentes de todos os estudantes. Os institutos de investigação em ciências sociais, os grupos culturais, os órgãos de notícias e as escolas tornaram-se todos instrumentos para o monopólio do partido sobre o pensamento, o espírito e a opinião, e estiveram continuamente empenhados em moldar a juventude da China. As pessoas empregadas neste trabalho tinham orgulho de serem consideradas “engenheiros da alma humana”. 

Os jovens experimentaram o maior controle do pensamento e, como resultado, não sonharam com nada além de ideias comunistas que apagaram os valores humanos intrínsecos:

Neste vácuo de pensamento e informação, o governo central utilizou o seu aparelho monopolista para incutir valores comunistas, ao mesmo tempo que criticava e erradicava todos os outros valores. Desta forma, os jovens desenvolveram sentimentos distintos e intensos de certo e errado, de amor e de ódio, que assumiram a forma de um desejo violento de concretizar os ideais comunistas. Quaisquer palavras ou ações que divergissem desses ideais seriam recebidas com um ataque conjunto.

Em 1959, o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai declarou Mao “o representante da verdade”. Jisheng escreve: “A divergência das opiniões de Mao era uma heresia, e uma vez que o governo tinha o poder de penalizar e privar um indivíduo de tudo, o mero pensamento de descontentamento provocava um pavor avassalador que por sua vez dava origem a mentiras”. 

Da mesma forma, durante a pandemia, ouvimos Fauci declarar: “Eu represento a ciência”. Como disse um médico, “o apoio ao processo científico foi substituído pela fé cega em coisas que afirmam ser ‘ciência’,  embora não sigam o processo científico”. 

Os totalitários exigem que a verdade seja ignorada. Agora, como então, as pessoas são incentivadas a demonstrar lealdade às políticas governamentais. Jisheng descreve a duplicidade de “funcionários e intelectuais”:

O pavor e a falsidade eram tanto o resultado como a força vital do totalitarismo: quanto mais uma pessoa possuía, mais ela tinha a perder. Possuindo mais do que a média das pessoas, os funcionários e intelectuais viviam com um medo muito maior e demonstravam a sua “lealdade” ao sistema através de lisonjas e enganos virtuosos. As mentiras que espalharam na vida oficial, na academia, nas artes e nos meios de comunicação social escravizaram o povo da China na falsidade e na ilusão. 

Para apoiar a industrialização chinesa, foram relatados rendimentos agrícolas muito inflacionados e Jisheng escreve: “qualquer um que ousasse questionar a precisão destes rendimentos agrícolas relatados corria o risco de ser rotulado como um ‘duvidoso’ ou ‘negacionista’ envolvido em ‘lançar calúnias sobre a excelente situação’, e qualquer pessoa que expusesse a fraude do modelo de alto rendimento estava sujeita a sanções.” 

Então a pior parte do caráter dos indivíduos era evocada: “as pessoas não hesitariam em mentir ou trair seus amigos em prol da autopreservação e promoção”. Aqueles que discordaram, ou simplesmente se recusaram a mentir, eram sujeitados a violência física.

Historicamente, sob os autoritários imperadores chineses, os dissidentes que permaneciam em silêncio eram tolerados; não havia necessidade de mentir. Jisheng explica que o silêncio já não era possível sob o maoísmo totalitário:

Sob o sistema imperial de épocas anteriores, as pessoas tinham direito ao silêncio. O sistema totalitário privou as pessoas até mesmo desse direito. Num movimento político após outro, cada pessoa foi forçada a “declarar a sua posição”, “expor os seus pensamentos” e “abrir o seu coração ao partido”. A repetida auto-humilhação levava as pessoas a pisotear continuamente as coisas que mais prezavam e a elogiar as que sempre mais desprezaram. Desta forma, o sistema totalitário causou a degeneração do caráter nacional do povo chinês. 

Os resultados desta “degeneração” foram, nas palavras de Jisheng, “a insanidade e a crueldade do Grande Salto em Frente e da Grande Revolução Cultural”. Aqueles que procuram que o sofrimento seja compensado por ganhos sociais podem perguntar sobre as grandes conquistas. Não houve compensação; o sistema totalitário chinês, na opinião de Jisheng, não conseguiu nada de valor. 

Tombstone documenta como os horrores foram possibilitados por um “processo administrativo totalitário” que magnificou “a vontade da liderança superior… em cada nível sucessivo, enquanto as vozes nos níveis mais baixos foram suprimidas em graus crescentes. Desta forma, políticas erradas foram intensificadas por feedback positivo e negativo, até resultar em desastre.” Sem mercados e sem a expressão de opiniões divergentes, mesmo as políticas mais ruinosas não poderiam ser corrigidas.

Porque Jisheng escreveu que Tombstone é instrutivo:

As autoridades num sistema totalitário esforçam-se para esconder as suas falhas e exaltar os seus méritos, encobrir os seus erros e erradicar à força toda a memória da calamidade, da escuridão e do mal provocados pelo homem. Por essa razão, os chineses estão sujeitos à amnésia histórica, imposta por quem está no poder. Eu ergui esta lápide para que as pessoas se lembrem e, doravante, renunciem à calamidade, às trevas e ao mal causados ​​pelo homem.

Hoje há pouca vontade de olhar para as consequências de políticas que destroem não só a liberdade de expressão, mas também a liberdade de consciência. O direito de falar e até mesmo de defender uma opinião diminuiu. Os chineses não estão sozinhos ao sofrerem de “amnésia histórica”. Hoje, os americanos recusam-se a aprender com os regimes totalitários do passado. Tal como na China de Mao, “nada de valor” será alcançado com o “salto em frente” de hoje. Tal como na China, o caráter moral dos americanos parece estar degradado. À medida que cada vez mais permanecemos em silêncio, a moralidade degrada-se e a ordem social da qual todos dependemos perde a sua capacidade de facilitar o florescimento humano.


Barry Brownstein é professor emérito de economia e liderança na Universidade de Baltimore. Ele é o autor de The Inner-Work of Leadership, e seus ensaios apareceram em publicações como a Foundation for Economic Education e Intellectual Takeout.

Fonte: AIER

O artigo publicado é de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista  do Instituto O Pacificador.

Metamodernismo: o culto ao relativismo e à contradição

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Foto: Hugo Jehanne/Unsplash

O conceito de metamodernismo não é particularmente conhecido, mas depois de aprender sobre ele, você o reconhecerá em todos os lugares – na música pop, nos filmes, nas postagens nas redes sociais, nas conversas em podcasts. Eric Weinstein articula inadvertidamente o espírito do metamodernismo em uma entrevista recente:

Você precisa manter a mentalidade de escassez; não é um erro. O problema é que você também precisa de uma mentalidade de abundância e, então, precisa acessá-la seletivamente em diferentes circunstâncias. … Continuamos tentando encontrar as configurações [exatas]. Tipo, “Deixe-me ajustar o ar-condicionado para 20oC e então serei feliz para sempre”. Na realidade, você precisa mais ou menos de facilidades contraditórias e precisa saber quando usar uma e abandonar a outra.

O metamodernismo é caracterizado por oscilar entre diferentes perspectivas – em particular, entre a ironia pós-moderna e a sinceridade moderna. Aplicando a terminologia de Eric Weinstein, é definir a visão de que é necessário “acessar seletivamente [perspectivas contraditórias] em diferentes circunstâncias”.

Weinstein não se propôs a apresentar uma perspectiva metamoderna – assim como Sufjan Stevens e Conor Oberst se propuseram a escrever canções metamodernas. O fato de Weinstein ter tropeçado nestas reflexões é simplesmente um indicativo da época em que vivemos. Para compreender as grandes mudanças na cultura atual, é necessário olhar para além do pós-modernismo e começar a discutir questões – incluindo questões polemicas de guerra cultural – em termos metamodernos.

O pós-modernismo surgiu em meados do século XX: depois da Segunda Guerra Mundial, mas antes do disquete e dos primeiros jogos de computador, como o Pong. Assim, embora o pós-modernismo possa dar uma vaga impressão de ser radical, moderno e visionário, na verdade, é uma coisa bastante antiga. Em termos tecnológicos, surgiu na Idade da Pedra. Ele já deu a volta no quarteirão e está mostrando ferrugem e rugas. Já na década de 1980, escritores e pensadores previram a morte do pós-modernismo. E considere o quanto a cultura mudou e a tecnologia avançou desde os anos 80.

A concepção atual de metamodernismo surgiu em 2010 com a publicação do artigo “ Notas sobre Metamodernismo ” dos teóricos culturais Timotheus Vermeulen e Robin van den Akker. O artigo descreve a experiência de viver num mundo em que nos sentimos confortáveis ​​oscilando entre diferentes perspectivas e examina esta nova forma de ver as coisas, discutindo os desenvolvimentos na arquitetura, na arte e no cinema.

Por exemplo, Vermeulen e Akker veem os filmes de Wes Anderson como evidência de “uma tendência recente no cinema independente caracterizada pela tentativa de restaurar, à realidade cínica dos adultos, uma ingenuidade infantil – em oposição ao cinema ‘inteligente’ pós-moderno de década de 1990, caracterizada pelo sarcasmo e pela indiferença.”

Tal como uma análise metamoderna pode ajudar a elucidar as mudanças culturais, também pode ajudar a dar sentido aos desenvolvimentos recentes nas guerras culturais. Um exemplo de metamodernismo é a ascensão do Templo Satânico como um ator legítimo nas questões da guerra cultural. Por um lado, o Templo Satânico é um clube social cafona que adota o LARP como religião e ironicamente abraça imagens satânicas estereotipadas; por outro lado, coloca sérios desafios legais às organizações religiosas que procuram efetivamente propor o Cristianismo como religião oficial nos EUA.

Se os cristãos puderem erguer um monumento aos Dez Mandamentos em propriedade do governo, então os satanistas poderão erguer uma estátua de Baphomet próximo a ele. Se os cristãos conseguirem aprovar leis que restrinjam o aborto, então os satanistas poderão abrir uma clínica de aborto “religiosa”. E se os cristãos podem ter clubes depois das aulas, os satanistas também podem.

Então, o Templo Satânico é uma paródia religiosa ou uma religião legítima? Bem, são ambos. É simultaneamente uma paródia religiosa e uma organização que os tribunais levam a sério. Somente o ponto de vista metamoderno dá sentido a isso.

Nossa cultura atingiu um momento estranho no que diz respeito à religião em geral. Cada vez menos pessoas se consideram religiosas e, daqueles que mantêm uma fé, cada vez menos comparecem regularmente a um local de culto. E, no entanto, a religião está subitamente na moda novamente. Por exemplo, em 2022, a colaboradora do New York Times Julia Yost descreveu como, num bairro moderno da cidade de Nova Iorque, “o catolicismo é a nova moda, em parte como uma rejeição da moralidade progressista, em parte como uma postura estética entre a moda da Nova Direita”.

Esse fenômeno vai além de um único bairro de Nova York. É uma vibração no zeitgeist. Por exemplo, em janeiro de 2024, a escritora da Geração Z, Suzy Weiss, foi convidada a prever as tendências culturais para o ano novo. Sobre o tema da religião, ela colocou de forma sucinta: “A religião está dentro. Deus está dentro. A espiritualidade está fora”. Bari Weiss, irmã de Suzy, esclareceu: “Os cristais estão fora, a Igreja Católica está dentro”.

Como você ironicamente abraça a religião, algo que afirma ser tão sério a ponto de determinar o destino de sua alma na vida após a morte? Isso é possível situando-se dentro da estrutura metamoderna.

O chamado movimento “trad” é um fenômeno semelhante, no qual os habitantes urbanos com elevado nível de escolaridade optam (ironicamente) por adotar papéis de gênero tradicionais. Como escrevi anteriormente, a “vanguarda” do metamodernismo pode ser “uma esposa de comerciante com mestrado pela Universidade de Berkeley e um bebê gritando, jogando cereais pela sala. Uma saia curta e uma jaqueta longa. Um movimento lateral de camgirl e um colar de cruz. Uma feminista que rejeita o feminismo da enésima onda.”

É claro que a perspectiva metamoderna se espalhou pela cultura, mas ainda não foi assumida pelos formadores de opinião. A menos que você procure, quase nunca ouvirá falar disso. Embora existam muitas figuras da guerra cultural que parecem preparadas para dar voz ao metamodernismo, estão todas presas num ciclo interminável de crítica ao pós-modernismo.

Consideremos um vídeo recente de uma discussão entre Sam Harris e Jordan Peterson, “The Issue with Postmodernism”. O vídeo gira em torno de uma reclamação familiar de Harris sobre a confusão moral do relativismo cultural. Harris argumenta que é objetivamente errado os países muçulmanos privarem as mulheres dos direitos básicos.

É difícil discordar da afirmação básica de Harris. No entanto, também é verdade que todas as culturas (mesmo aquelas que são moralmente atrasadas) são incrivelmente complexas, ricas e bonitas nos seus próprios direitos. É possível renunciar por um momento ao papel de juiz moral e apreciar a cultura, digamos, da Inglaterra vitoriana, ou do Império Asteca, ou do Irã moderno, mesmo que cada uma dessas culturas tenha muitos elementos que não são otimizados para o florescimento de todos os cidadãos. Na verdade, a maioria de nós faz isso. Lemos sobre os astecas, por exemplo, com um forte sentimento de admiração e respeito antes mesmo de passar pela nossa cabeça examinar a moralidade de qualquer prática social ou tradição religiosa que eles defendiam.

Há duas visões contraditórias em jogo aqui: 1) o relativismo cultural oferece uma lente através da qual se pode valorizar e apreciar toda a rica e diversificada gama de culturas, ao longo do tempo; 2) uma concepção moderna dos direitos humanos oferece um argumento infalível para condenar os governos que subjugam as mulheres. O metamodernismo permite-nos considerar ambas as ideias ao mesmo tempo e aplicá-las seletivamente em diferentes circunstâncias.

O subtexto da visão metamoderna é que o pós-modernismo, embora convincente, é incompleto. Num mundo em que não existem verdades básicas nem grandes narrativas, não pode haver progresso moral. E, no entanto, todos nós vivemos as nossas vidas de acordo com verdades morais estritas e grandes narrativas. Isto é especialmente verdadeiro para as elites instruídas que são mais simpáticas ao pós-modernismo. Como Harris observou Jordan Peterson, as mesmas pessoas que não podem condenar uma nação muçulmana por subjugar mulheres ficarão moralmente indignadas por um estudante universitário usar uma fantasia “inapropriada” de Halloween.

Então, sim, derrote o pós-modernismo com a indignação moral “moderna”, mas não o jogue fora completamente. Abrace a confusão de ser um macaco contador de histórias numa era digital em que Deus está morto, mas as práticas religiosas do velho mundo estão – pelo menos por enquanto – “na moda”.

“E isto é que é difícil”, diz Eric Weinstein, referindo-se à necessidade de oscilar entre perspectivas contraditórias. “Qualquer pessoa com vários filhos sabe que, com um filho, você diz: ‘Você não pode se dar ao luxo de correr esses riscos; se você pular de algo assim, pense no que poderia acontecer! Enquanto que com a outra criança você diz, ‘Não é arriscado, não se preocupe, vá em frente e pule!’”.


Peter Clarke é escritor em São Francisco, com bacharelado em psicologia e doutorado em direito de propriedade intelectual.

Fonte: Quillette

A jornada do belo: da beleza ao sublime

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Edmund Burke (1729-1797), filósofo e político anglo-irlandês do século XVIII, deixou uma marca indelével na estética.

Nascido em Dublin, Irlanda, em 12 de janeiro de 1729, Burke era filho de um advogado protestante e uma mãe católica. Estudou no Trinity College de Dublin e, posteriormente, mudou-se para Londres, onde abandonou os estudos de Direito para se dedicar à carreira literária e viajar pela Europa. Em 1765, entrou para a política como secretário do Marquês de Rockingham, líder do Partido dos Whigs. Defendeu o papel dos partidos políticos na limitação do poder do rei e apoiou as reivindicações das colônias inglesas. Além disso denunciou injustiças da administração inglesa na Índia.

Escreveu “Reflexões Sobre a Revolução Francesa” (1790), condenando os excessos da revolução como um marco da ignorância e brutalidade, com fortes críticas à execução de “homens bons”, incluindo o cientista Antoine Lavoisier.

Mas foi com a sua obra “Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e da Beleza” que Burke explorou as origens psicológicas do sublime e da beleza, oferecendo insights profundos sobre a experiência estética e a natureza humana.

O belo

Para Burke, o belo é aquilo que é bem-formado e esteticamente agradável. Ele reside na harmonia, na proporção e na serenidade. Quando nos deparamos com algo bem-formado e esteticamente agradável, experimentamos um prazer que nos acalma.

A harmonia é como uma melodia suave que acalma nossos sentidos. Ela nos envolve em uma sensação de equilíbrio e ordem. A proporção, por sua vez, nos lembra que existe uma relação perfeita entre as partes, criando uma sensação de completude.

Imagine um jardim bem cuidado, com flores dispostas em proporções equilibradas, cores harmoniosas e uma atmosfera serena. Esse cenário nos traz prazer, nos conecta à natureza e nos permite escapar momentaneamente das preocupações cotidianas.

O belo, para Burke, não é apenas superficial; é uma experiência que transcende o imediato. Ele nos convida a contemplar algo maior, a encontrar significado na simplicidade e a apreciar a ordem subjacente ao mundo.

Ao buscarmos o belo, encontramos não apenas prazer estético, mas também uma conexão com o sublime da existência humana .

O sublime

O sublime pode ser compreendido como uma experiência que transcende o cotidiano. Ele nos atinge profundamente, como um trovão que ecoa nos confins da alma. Quando nos deparamos com o sublime, sentimos uma intensidade que nos arrebata.

Imagine estar no topo de uma montanha, olhando para um abismo profundo. A vastidão do cenário, a imensidão do espaço, tudo isso nos envolve em uma sensação de pequenez e admiração. O sublime nos faz confrontar nossa própria finitude e insignificância diante da grandiosidade do mundo.

Mas o sublime também pode ser assustador. Ele nos desafia a sair da zona de conforto, a enfrentar o desconhecido. É como estar à beira de um precipício, com o coração acelerado e os sentidos aguçados. O sublime nos coloca de frente ao abismo e nos faz questionar sobre a nossa própria existência.

Em obras de arte, como pinturas ou literatura, o sublime é frequentemente representado por tempestades, montanhas imponentes, o oceano em fúria. Essas imagens nos lembram da força da natureza e da nossa própria fragilidade e pequenez.

O sublime nos desafia a ir além do que é familiar, a explorar o desconhecido e a encontrar significado na vastidão do mundo. Ele nos convida a transcender nossos limites e a contemplar algo maior do que nós mesmos.

O belo versus o sublime

A grande contribuição de Edmund Burke reside na distinção clara entre duas experiências estéticas: o belo e o sublime. Esses dois conceitos, embora relacionados, evocam respostas distintas em nós.

O belo nos traz prazer. É aquilo que é bem-formado, harmonioso e esteticamente agradável. Quando contemplamos algo belo, experimentamos uma sensação de calma e satisfação. Pode ser uma paisagem serena, uma melodia suave ou uma obra de arte equilibrada.

Por outro lado, o sublime é algo que nos afeta visceralmente. Ele transcende o prazer e nos leva a um território mais profundo. O sublime está ligado a sensações de intensidade, grandiosidade e, muitas vezes, medo, envolvendo uma experiência que vai além do simples prazer.

O sublime nos confronta com o desconhecido, com o incontrolável. Pode ser a força de uma tempestade, a imponência de uma cachoeira ou a vastidão do oceano. Essas experiências nos lembram da nossa pequenez diante da natureza e da grandeza do mundo.

O sublime está ligado à vastidão, à grandeza e à profundidade. Ele nos compela a olhar para além do nosso eu individual, a enfrentar o desconhecido e a questionar nossa própria existência. O sublime é uma jornada emocional que nos leva a lugares inexplorados e nos faz sentir vivos.

Impacto e Influência

Edmund Burke transcendeu as divisões partidárias. Ele é considerado um símbolo tanto dos conservadores quanto dos liberais. Sua abordagem equilibrada e sua ênfase na tradição e na moderação atraíram seguidores de diferentes correntes políticas.

De um modo geral Burke valorizava a complexidade da experiência humana, acreditando que a tradição era essencial para a estabilidade social. Sua defesa da moderação e da empatia como pilares da sociedade influenciou o pensamento político e filosófico, alertando contra mudanças radicais e defendendo sempre a evolução gradual.

Uma das suas principais visões era a definição de liberdade como um direito, mas também enfatizava a necessidade de ordem para evitar o caos.

Seu legado está presente em debates sobre conservadorismo, liberalismo e ética, sempre pela busca do equilíbrio entre liberdade e ordem continua, tão relevantes em nossa sociedade atual. A doutrina de Burke influenciou escritores, pintores e críticos. Grandes nomes como Wordsworth, Thomas Hardy e Kant assimilaram suas perspectivas.

A obra de Burke não apenas enriquece a estética moderna, mas também revela seu entrecruzamento com o pensamento político e humano. O poder da arte e a arte de exercer o poder estão intrinsecamente ligados.

O autor nos lembra que a vida não é em preto e branco. Ela é repleta de nuances, tradições e desafios. Seu legado nos convida a buscar o equilíbrio entre a liberdade individual e a responsabilidade coletiva, valorizando a riqueza da experiência humana.

Para saber mais:

IoP

Sobre verdade e beleza

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Foto: Stephanie Klepacki/Unsplash

Para minha grande surpresa , outro dia me peguei lendo uma lista do Buzzfeed. A peça: “Tipos de corpo ideais das mulheres ao longo da história”. O conteúdo: diversas imagens de um elenco diversificado de modelos mostrando como os padrões de beleza mudaram ao longo do tempo.

Uma das primeiras coisas que me impressionou ao ler o artigo foi que, embora os padrões de beleza feminina pareçam ter mudado ao longo do tempo (embora não muito – quase todos os modelos eram magros), é curioso que a forma masculina ideal não tenha mudado. De forma alguma O David de Michelangelo é tão bonito em 2017 quanto era em 1517 e pode esperar que o seja em 2517.

Estatueta Feminina, Egito. Cerca de 3500 – 3400 a.C.

Aprendi que os antigos egípcios acreditavam que cabelos longos trançados eram um aspecto importante da beleza feminina. As tranças “emolduravam um rosto simétrico”, e as mulheres mais desejadas eram esguias, com cintura alta e ombros finos. (O modelo do “Egípcio Antigo” era afro-americano, embora seja mais provável que os Antigos Egípcios se parecessem com outros povos mediterrâneos).

Esperava-se que as mulheres chinesas da Dinastia Han (c.206 AC – 220 DC) tivessem longos cabelos pretos, lábios vermelhos e dentes brancos, entre outras coisas. Mas também na lista estava a pele pálida e, a menos que você viva debaixo de uma rocha desde a década de 1960, saberá que não faltam intelectuais que atribuíram o desejo de ter uma pele pálida aos efeitos nefastos do colonialismo. Que a sua presença era um critério de beleza há muito tempo (e tão longe da Europa) como a China Han diz, para dizer o mínimo.

Em seguida veio a beleza da Itália renascentista, exemplificada por um “corpo arredondado, incluindo quadris cheios e seios grandes”. A modelo era realmente corpulenta e sua presença servirá como uma espécie de garantia para quem hoje se considera acima do peso.

Ticiano, Vênus e o tocador de alaúde, ca. 1565–70

O protótipo da Renascença foi o único modelo assim; o restante era comparativamente magro, sugerindo fronteiras para a subjetividade humana no que diz respeito à massa corporal. Não quero insistir na ideia de que os padrões de beleza mudam com o tempo, mas farei um breve resumo dos outros. Na Inglaterra vitoriana, quanto menor a cintura, melhor. As mulheres andróginas eram populares na década de 1920. As belezas da década de 1950 tinham figuras “curvilíneas”. Supermodelos atléticas e rechonchudas definiram a década de 1980, as heroínas chiques abandonaram a década de 1990. Finalmente chegamos aos dias de hoje, onde nos dizem que as mulheres devem “ser magras, mas saudáveis, e ter seios grandes e bunda grande, mas barriga lisa”.

Há uma série de insights reveladores sobre o pensamento pós-moderno do artigo. Considere a seguinte frase: “As mulheres na década de 2000 foram bombardeadas com tantos requisitos diferentes de atratividade”. Não há relativismo aqui: as mulheres modernas estão sendo atacadas por um conjunto de exigências sem precedentes, singularmente desconcertantes e inatingíveis. Mas serão os padrões aos quais as mulheres aspiram hoje menos acessíveis do que os que as mulheres enfrentaram no passado? Esperava-se que as mulheres na China Han tivessem pele branca em uma época de agricultura onipresente de arrozais, e dentes perfeitos em uma época anterior à odontologia em qualquer forma reconhecível. Para ter bons dentes na Idade do Ferro era preciso acertar na loteria genética dos dentes. Você tinha que ter muita sorte.

As exigências supostamente colocadas às mulheres modernas, conforme afirmado no artigo, são altamente suspeitas. O desejo de um “bumbum grande” dificilmente é universal hoje em dia, embora a maioria concorde que a magreza é uma característica considerada positiva pela maioria dos homens e mulheres. Ao nos informar sobre os diversos padrões de beleza ao longo da história, imagino que seja intenção do autor nos informar sobre a subjetividade da beleza; que é relativo ao tempo e ao espaço. Mas não é essa a impressão que temos ao ler o artigo. Os ideais das sociedades anteriores são elucidados e não são vagos e incipientes, mas autoritários e plenamente formados. Os egípcios, gregos e vitorianos sabiam do que gostavam. Para nossos ancestrais distantes, a beleza não era subjetiva.

O comentário mais bem avaliado do artigo afirma que “somos todos lindos” e observa a inconstância dos padrões de beleza da humanidade. Mas esta afirmação só é verdadeira se vivermos numa civilização caótica com um sentido estético debilitado – algo que pode muito bem ser o caso neste momento. A nossa atual percepção do mundo – a nossa própria verdade moderna – é rejeitada por pessoas para quem a realidade é apenas uma opinião. Não é de admirar que o cidadão comum fique confuso com a arte moderna. Se tudo é belo então nada é.

Existe a suposição culturalmente destrutiva de que os padrões atuais são imutáveis, mas não são. Eles também serão vítimas dos caprichos estéticos da humanidade.

Espera-se que o ocidental moderno (a estética de outras civilizações não está sob ataque) olhe para uma variedade de formas e tamanhos corporais, admire todos eles e veja cada um como igualmente atraente. Mas a ciência teve um impacto profundo na nossa compreensão da beleza, na medida em que a medicina moderna nos informa sobre os efeitos devastadores da obesidade na saúde humana.

Pessoas de todas as idades têm padrões de beleza exclusivos. Cinturas minúsculas eram lindas para os vitorianos, a obesidade feminina é linda para os mauritanos contemporâneos, a pele branca era (e ainda é) bonita para os chineses. Essas eram as suas verdades. Somente aos ocidentais modernos é dito que não podem abraçar a sua própria verdade, que a sua estética está errada, que literalmente todas as mulheres no mundo são bonitas.

Sir Roger Scruton disse uma vez – e estou parafraseando aqui – que qualquer pessoa que diga que não existem verdades ou que toda verdade é “meramente relativa” está pedindo para não ser acreditado.

Então não acredite neles.


Derek Hopper é um escritor irlandês e vive em Bangkok.

Fonte: Quillette

Para além do relativo: A importância da beleza

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Desde os primórdios da humanidade, o conceito de beleza tem sido objeto de profunda reflexão e contemplação por parte de filósofos em busca de compreensão e significado. Aristóteles, Platão, David Hume, Immanuel Kant, Roger Scruton, São Tomás de Aquino e Edmund Burke são alguns dos pensadores que contribuíram significativamente para essa discussão ao longo dos séculos.

Antes de tudo é crucial compreendermos a importância desse conceito em nossa vida cotidiana. A beleza, em sua essência, transcende a mera estética; ela é intrínseca à nossa experiência humana, influenciando nossas percepções, emoções e interações com o mundo ao nosso redor. A busca pela beleza não se restringe apenas à apreciação de obras de arte ou paisagens naturais deslumbrantes; ela permeia todas as esferas da existência, desde a maneira como nos relacionamos com os outros até como percebemos a nós mesmos.

No entanto, é inegável que ao longo do tempo, o conceito de beleza tem sido submetido a uma série de transformações e deturpações, especialmente sob a ótica da arte contemporânea. Roger Scruton, em sua obra “Beleza: Ato desinteressado”, argumenta que a arte contemporânea muitas vezes abandonou a busca pela beleza em favor de uma busca por chocar e provocar, negligenciando assim a importância fundamental da estética e do encantamento na experiência humana.

Diante desse contexto, torna-se importante revisitar os conceitos clássicos de beleza propostos pelos filósofos mencionados anteriormente e refletir sobre sua relevância em um mundo onde a estética é frequentemente relegada a segundo plano. Afinal, o que podemos aprender com Aristóteles sobre a harmonia e proporção, com Platão sobre a beleza como manifestação do divino, com Kant sobre a beleza como experiência desinteressada, com São Tomás de Aquino sobre a beleza como reflexo da ordem divina e com Edmund Burke sobre a beleza como fonte de prazer e sublimidade?

Os conceitos clássicos de beleza

Aristóteles, em sua obra “Ética a Nicômaco”, argumenta que a beleza está intrinsecamente ligada à ideia de proporção e harmonia. Para o filósofo grego, a beleza é encontrada na perfeição das formas e na simetria dos objetos, refletindo a ordem e a regularidade presentes na natureza e no universo. Essa concepção aristotélica de beleza sugere que a estética é uma manifestação da própria estrutura do cosmos, proporcionando uma sensação de equilíbrio e plenitude ao observador.

Platão, por sua vez, concebia a beleza como uma forma transcendental, uma ideia eterna e imutável que transcende o mundo sensível. Em seu diálogo “O Banquete”, Platão descreve o “Belíssimo” como o objeto de desejo supremo, capaz de conduzir o indivíduo à contemplação das formas ideais e à busca pela perfeição moral. Nessa perspectiva platônica, a beleza é mais do que uma mera qualidade estética; ela é uma porta de entrada para o conhecimento e a verdade.

David Hume, filósofo empirista do século XVIII, abordou a beleza de uma maneira mais subjetiva, argumentando que ela reside na mente do observador. Para Hume, a beleza é uma qualidade que desperta sentimentos de prazer e satisfação, derivados da percepção de ordem, proporção e harmonia. Essa abordagem subjetiva da beleza destaca a importância das experiências individuais na apreciação estética e reconhece a diversidade de gostos e preferências.

Immanuel Kant, em sua “Crítica da Faculdade do Juízo”, distingue entre o belo e o sublime, atribuindo à beleza uma dimensão universal e desinteressada. Para Kant, a experiência do belo é caracterizada por uma sensação de prazer desinteressado e uma apreciação puramente estética, desvinculada de interesses pessoais ou utilitários. Essa concepção kantiana de beleza enfatiza sua capacidade de transcender as limitações do indivíduo e unir diferentes perspectivas em torno de um objeto ou obra de arte.

São Tomás de Aquino, influenciado pela filosofia de Aristóteles, concebia a beleza como uma manifestação da ordem divina e uma expressão da perfeição de Deus. Para Aquino, a beleza está intimamente ligada à bondade e à verdade, refletindo a harmonia e a integridade presentes na criação divina. Essa visão teológica da beleza ressalta sua importância como uma via de acesso ao divino e uma fonte de inspiração espiritual.

Edmund Burke, por fim, explorou a beleza como uma fonte de prazer e sublimidade, capaz de evocar sentimentos de admiração e reverência. Em sua obra “Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo”, Burke distingue entre o belo, associado à suavidade e à delicadeza, e o sublime, associado à grandeza e à grandiosidade. Para Burke, a experiência estética é uma forma de escapismo e elevação, permitindo ao indivíduo transcender as preocupações mundanas e entrar em contato com o sagrado e o transcendental.

A deturpação contemporânea da beleza

Embora os conceitos clássicos de beleza propostos por filósofos como Aristóteles, Platão, Kant e outros tenham resistido ao teste do tempo, é inegável que a noção de beleza foi gradualmente desafiada e subvertida no contexto da arte contemporânea. O movimento moderno, com sua ênfase na originalidade, subjetividade e transgressão, levou a uma rejeição dos padrões estéticos tradicionais em favor de uma estética dita experimental e provocativa.

Roger Scruton, em sua crítica à arte contemporânea, argumenta que muitos artistas abandonaram a busca pela beleza em prol da busca por choque e confronto. Sob a influência do movimento pós-moderno, a arte tornou-se cada vez mais abstrata, conceitual e muitas vezes desconectada do público em geral. Em vez de inspirar admiração e encantamento, muitas obras de arte contemporânea provocam desconforto, confusão e até mesmo repulsa.

Essa deturpação da beleza na arte contemporânea pode ser atribuída a uma série de fatores. Em primeiro lugar, o desejo de romper com as tradições estéticas do passado levou os artistas a desafiar as noções convencionais de beleza e propor novas formas de expressão artística. Em segundo lugar, a crescente comercialização e mercantilização da arte incentivou a busca por obras escandalosas e controversas que atraiam a atenção da mídia e do mercado.

Além disso, a influência da crítica de arte e dos círculos intelectuais também desempenhou um papel importante na promoção de uma estética mais conceitual e provocativa. Muitos críticos e curadores de arte passaram a valorizar a originalidade, a transgressão e a inovação em detrimento da beleza tradicional, contribuindo assim para a marginalização da estética clássica em favor de uma estética mais subversiva e desafiadora.

Essa deturpação contemporânea da beleza levanta questões importantes sobre o papel da arte na sociedade e o significado da estética em nossas vidas. Será que a busca pelo choque e pela originalidade a todo custo realmente enriquece nossa experiência estética e nos aproxima da verdadeira beleza? Ou será que estamos perdendo de vista o verdadeiro propósito da arte, que é inspirar, elevar e enriquecer nossas vidas?

Resgatando a importância da beleza clássica

Diante da deturpação contemporânea da beleza na arte e na cultura, é imperativo resgatarmos a importância dos conceitos clássicos de beleza propostos por filósofos como Aristóteles, Platão, Kant e outros. A beleza, longe de ser uma mera questão de preferência ou convenção cultural, é uma dimensão fundamental da experiência humana, capaz de nos conectar com o divino, inspirar admiração e elevar nossa alma.

Ao reconhecermos a beleza como uma qualidade transcendental, muito além das limitações do tempo e do espaço, podemos redescobrir sua capacidade de nos unir como seres humanos e nos elevar além das preocupações mundanas. Os conceitos clássicos de beleza nos convidam a contemplar a harmonia e a proporção, a buscar a perfeição moral e a reconhecer a presença do divino em nosso meio.

A importância da beleza atualmente reside não apenas em sua capacidade de nos encantar e inspirar, mas também em sua capacidade de nos conectar com o transcendental e nos lembrar da nossa humanidade compartilhada. Que possamos, portanto, buscar a beleza em todas as suas formas e reconhecer sua presença em nossas vidas, agora e sempre.

IoP

Por que a beleza importa?

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Em meio ao turbilhão de questionamentos sobre a busca pela beleza na contemporaneidade, um nome emerge com destaque: Sir Roger Vernon Scruton, filósofo britânico cuja dedicação às demandas do belo foram notórias.

Professor emérito das universidades de Boston e St. Andrews, além de membro da Sociedade Real de Literatura da Grã-Bretanha, Scruton se consagrou como um dos mais influentes pensadores atuais, seguindo os passos de figuras como Aristóteles e Edmund Burke, dentre outros. Sob a ótica conservadora, a beleza não é apenas uma estética, mas uma necessidade vital para a existência humana, uma vez que ela confere significado e continuidade à vida.

O pensamento conservador, muitas vezes mal compreendido, encontra em Scruton um de seus mais sólidos defensores, entendendo a vida em sociedade como uma parceria entre os vivos, os mortos e os que estão por nascer. Essa visão fundamentou sua filosofia, especialmente no que diz respeito à arte e à arquitetura. Para Scruton, a arte não é apenas uma expressão estética, mas uma fonte de significado que conecta as pessoas ao sagrado e ao transcendente.

O Sublime e o Belo de Edmund Burke

Edmund Burke abordou indiretamente o tema da beleza em sua obra mais conhecida, intitulada “Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo” (1757).

Em sua investigação, Burke explorou não apenas o sublime, mas também o belo, embora o sublime seja o foco principal do texto. Ele discutiu as sensações que surgem em nós diante de certos objetos naturais ou situações, e como essas sensações nos afetam emocionalmente.

Burke descreveu o belo como algo que nos traz prazer suave e agradável, enquanto o sublime foi associado a sensações mais intensas e até mesmo aterrorizantes. Ele argumentou que o belo está relacionado à simetria, à harmonia e à proporção, elementos que nos proporcionam uma sensação de prazer estético, comumente encontrado nas formas naturais. Assim, mesmo que sua obra principal se concentrou mais no sublime, Burke ofereceu insights valiosos sobre a natureza e os efeitos da beleza, influenciando significativamente o pensamento de Scruton.

A Essência do Ser Humano

Ao explorar temas como a natureza humana, a política, a religião e o sexo, Scruton não apenas levantou questões conceituais, mas também as examinou sob uma perspectiva prática. Seu compromisso em investigar a essência do ser humano e sua relação com o mundo refletiu um viés socrático em seu discurso, afinal buscava não apenas compreender, mas também guiar o homem contemporâneo na busca pelo que é verdadeiro, bom e belo.

Um dos pontos mais contundentes em que Roger Scruton confronta a arte contemporânea é sua crítica à perda de beleza e significado. Scruton argumenta que muitas manifestações artísticas contemporâneas, especialmente aquelas associadas ao movimento pós-moderno, abandonaram os valores tradicionais de estética em favor de uma abordagem que privilegia o choque, o escândalo e o conceitualismo vazio.

Kitsch e metakitsch

Para Scruton, a arte contemporânea frequentemente abraça o que ele chama de “kitsch” e “metakitsch“, termos que ele utiliza para descrever a produção massificada de obras sem valor estético ou substância significativa. Ele critica o relativismo cultural que permeia muitas interpretações da arte atual, onde qualquer objeto pode ser considerado arte, independentemente de sua habilidade, originalidade ou apelo estético.

Kitsch é um termo usado para se referir a obras de arte, objetos ou produções culturais que são consideradas de mau gosto, pretensiosas ou excessivamente sentimentais. O kitsch geralmente apela para emoções superficiais e clichês, muitas vezes explorando temas como romantismo exagerado, nostalgia barata ou idealizações simplistas da realidade.

Por outro lado, metakitsch é uma extensão, uma abordagem de como o kitsch é percebido, criticado ou incorporado à cultura contemporânea. O metakitsch pode envolver uma reflexão consciente sobre os elementos kitsch em uma obra de arte ou uma abordagem irônica em relação ao próprio conceito de kitsch.

A epidemia do kitsch não se limita apenas à arte, mas também se estende à arquitetura contemporânea e ao design. Scruton lamenta a massificação estética e a falta de beleza nas construções modernas, na comunicação e no design que privilegiam a funcionalidade em detrimento da estética. Para ele, a arquitetura e o design devem refletir a identidade e o pertencimento das pessoas, proporcionando um ambiente que inspire harmonia e beleza.

Em meio a esse panorama, Scruton não apenas critica, mas também propõe soluções. Sua participação em iniciativas governamentais, como a comissão “Building Better, Building Beautiful”, demonstrou seu compromisso em promover a beleza e a qualidade de vida através da arquitetura. Para Scruton, estimar o belo é essencial para preservar não apenas a estética, mas também os valores fundamentais da humanidade.

Em última análise, podemos compreender que o legado de Roger Scruton é um lembrete de que a beleza não é um luxo, mas uma necessidade humana. Suas reflexões nos convidam a reavaliar nosso relacionamento com o belo e a buscar uma vida que seja verdadeiramente significativa e esteticamente enriquecedora. A beleza está ao nosso redor, esperando para ser descoberta e apreciada. É tempo de redescobrir a beleza perdida e permitir que ela guie nossas vidas rumo a um futuro mais luminoso e inspirador.

Aristóteles e “A Poética”

Aristóteles, em “A Poética”, analisou a tragédia grega e definiu elementos fundamentais da arte dramática, como a imitação, a catarse e a estrutura narrativa. Ele discutiu a importância da trama, dos personagens e do estilo na composição de uma obra de arte, enfatizando a necessidade de uma representação verossímil da realidade.

Scruton também compartilhou com Aristóteles uma profunda apreciação pela beleza e uma compreensão da arte como uma expressão essencial da condição humana. Ambos os pensadores reconheceram a importância da arte na busca pela verdade e no enriquecimento da experiência humana.

Expandindo os princípios estéticos de Aristóteles para o contexto contemporâneo, Scruton abordou questões como a decadência da arte e a necessidade de preservar a tradição e a beleza nas produções artísticas. Enquanto Aristóteles se concentrou principalmente na tragédia e na poesia épica, Scruton ampliou o escopo de sua análise para incluir diversas formas de arte, da música à arquitetura.

Ambos compartilham uma abordagem filosófica que valorizava a contemplação e a busca pelo entendimento do mundo. Os pensadores reconheceram a importância da reflexão sobre a arte e a estética para uma compreensão mais profunda da condição humana.

Muitas das manifestações artísticas contemporâneas, especialmente aquelas associadas ao pós-modernismo, haviam abandonado os valores tradicionais da estética em favor de uma abordagem que privilegiava o choque, o escândalo e o conceitualismo vazio. Scruton defendia a importância da beleza na arte e na arquitetura como algo que não apenas enriquece a vida humana, mas também reflete os valores fundamentais da humanidade.

Para o filósofo, a arte deveria aspirar à transcendência e à conexão com o sagrado, em vez de se afundar na negatividade e na desesperança, ou seja, a beleza realmente importa!

Scruton produziu vários documentários sobre a beleza. Disponibilizamos um deles como material complementar a este artigo:


IoP

Cuidado com os cordeirinhos

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Numa entrevista recente, Elon Musk observou que os valores americanos se inverteram, passando de “o poder torna correto quem o tem” para a oposição à força e considerando a fraqueza como uma virtude:

Realmente, o círculo completou-se do que tem sido historicamente o caso. Durante a maior parte da história, o princípio tem sido “o poder torna correto quem o tem”. … Agora, meio que mudamos para “se você é mais fraco, você está certo”. Mas nada disso é verdade. Existe justiça independente de força ou fraqueza. Só porque alguém é forte não significa que esteja certo, e só porque alguém é fraco não significa que esteja certo.

Musk parece estar apontando para um exemplo de uma tendência mais ampla em nossa sociedade, onde é cada vez mais comum definir-se – ou um movimento, campanha, sistema de valores – em oposição ou como uma reversão de algo em vez de em direção a algo positivo em si mesmo. certo. 

Vemos isto em todos os cantos do nosso discurso político: anticapitalismo, anti-wokeismo, anti-racismo, anti-sionismo, anti-fascismo, anti-imigração, never-Trump, cultura do cancelamento, antivax, techlash. O problema não é que estas posições sejam necessariamente incoerentes ou erradas, mas quando adotadas na ausência de valores positivos – sem uma inspiração interna que nos mova em direção a um mundo possível em detrimento de outro – perdemos a capacidade de lidar com a complexidade, de formar perspectivas diferenciadas, ou traçar um caminho do nosso mundo imperfeito para um mundo melhor.

Grandes aves de rapina e cordeirinhos

Nietzsche escreveu extensivamente sobre como os humanos podem ficar presos em um binário moral simplista e, em particular, sobre os perigos de definir os próprios valores em oposição a outra coisa. Ele descreve dois tipos de formação de valor, representados pelas “grandes aves de rapina” e pelos “cordeirinhos”.

As grandes aves de rapina criam valores espontaneamente como consequência direta de sua própria experiência. Um pássaro “concebe a ideia básica de ‘bom’ por si mesmo, antecipadamente e espontaneamente, e só então cria uma noção de ‘ruim’” – os valores positivos dos pássaros são primários, e “ruim” surge apenas como uma reflexão tardia. É “bom” comer os cordeirinhos saborosos porque são deliciosos, então não poder fazer isso é “ruim”. Não há necessidade de apelar para uma moralidade universal – o pássaro pesa o mundo em relação às suas inclinações naturais.

Os cordeirinhos, por outro lado, são fracos e oprimidos pelos pássaros e, como consequência de sua fraqueza, não conseguem perceber valores positivos dentro de si. Em vez disso, desenvolvem o que Nietzsche chamou de ressentimento – um ódio vingativo contra os seus opressores, e isto se torna a base dos seus valores. Ao contrário dos pássaros, faltam-lhes valores próprios, por isso os cordeiros não julgam os pássaros em relação a si próprios e ao seu “bem”. Num ato criativo de autoengano, eles transformam o seu ódio pelos seus opressores num padrão externo ou valor universal pelo qual podem julgar os pássaros. Como disse Nietzsche :

O que eles odeiam não é seu inimigo, oh não! Eles odeiam a “injustiça”, a “impiedade”; o que eles acreditam e esperam não é a perspectiva de vingança, o delírio da doce vingança, mas a vitória de Deus, o Deus justo, sobre os ímpios.

Nietzsche usa “Deus” aqui, mas poderíamos facilmente trocar qualquer apelo à moralidade universal: direitos humanos, valores familiares, igualdade, justiça ou equidade.

Para os cordeiros, o mal é o fundamento da sua moralidade, e o bem é a reflexão tardia. Os cordeiros dizem uns aos outros: “Essas aves de rapina são más; e quem é menos parecido com uma ave de rapina e mais parecido com o seu oposto, um cordeiro, é bom, não é? Os pássaros, por outro lado, não se importam nem um pouco com os cordeiros. Eles dizem: “não guardamos nenhum rancor desses bons cordeiros; na verdade, nós os amamos, nada é mais saboroso do que um cordeiro tenro”. A moralidade fabricada dos cordeiros permite-lhes convencerem-se de que são dignos, justos e felizes. Quando usado para manipular outras pessoas, torna-se a fonte de poder de um cordeiro.

Nietzsche não está dizendo que as grandes aves de rapina sejam boas e que os cordeirinhos sejam maus. Mas ele encoraja-nos a abraçar a complexidade, a ver além do binário opressor/oprimido e a evitar a glorificação acrítica dos oprimidos. Os pássaros podem estar oprimindo os cordeiros, e os cordeiros têm todos os motivos para revidar. O problema para os cordeiros é que, por acreditarem que a virtude e a auto realização residem em serem o oposto de um pássaro, são impedidos de fazer o trabalho necessário para se tornarem algo digno do seu próprio respeito. O autoengano leva ao apego à própria miséria em vez de superá-la – “eles me dizem que sua miséria significa que são os escolhidos de Deus”.

Um caminho mais autêntico e frutífero seria reconhecer as próprias deficiências e dizer claramente: “Nós, pessoas fracas, somos simplesmente fracos; é bom não fazer nada para o qual não sejamos fortes o suficiente.” Só então poderão passar por um processo de auto superação que permita o nascimento de valores positivos.

Cordeiros Modernos

A tendência humana para o ressentimento e a sua expressão criativa como uma inversão de valores opressores não é nova. Sobre a genealogia da moralidade foi publicado originalmente em 1887, e a ideologia que Nietzsche atacou foi o cristianismo. Certos aspectos da modernidade alimentam a insatisfação e a inveja que levam a definir-se em oposição. Os algoritmos das redes sociais amplificam as vozes de queixa, vitimização e indignação. A cultura do consumo motiva potenciais compradores com apelos à inveja e à insatisfação. Políticos de todos os matizes motivam os eleitores com apelos ao ódio contra um suposto opressor – capitalistas ricos e gananciosos na esquerda, esnobes globalistas de elite na direita.  

Num mundo imperfeito, é mais fácil criticar soluções do que fazer escolhas pragmáticas que exijam escolher a opção menos pior e fazer sacrifícios ao longo do caminho para um futuro mais positivo. É mais fácil protestar do que superar-se e inventar criativamente novos valores que possibilitem navegar no mundo real. Para além de manter os indivíduos presos ao ressentimento e à indignação, esta moralidade reativa pode ser usada para justificar atos de brutalidade dirigidos a um aparente opressor, ao mesmo tempo que mascara a verdadeira motivação por detrás de tais atos. Assumir uma identidade de “oprimidos” torna mais fácil para os coletivos tolerar comportamentos que de outra forma seriam obviamente desagradáveis.

Hoje, vemos essa mentalidade em todos os lugares. Os progressistas exigem que os trabalhadores da classe média percam os seus empregos por causa de uma piada de mau gosto nas redes sociais; Os republicanos defendem os piores erros do seu líder em nome de “revidar” a elite; os anticolonialistas defendem a violação e o assassinato de civis israelitas pelo Hamas em nome da “resistência”; os supremacistas brancos justificam a violência e o ódio em retaliação pela “substituição”; Stalin procurou libertar a Rússia das conspirações dos capitalistas burgueses e dos imperialistas; Hitler acreditava que estava lutando contra uma conspiração judaica global.

É mais fácil preencher o vazio com indignação, inveja e ódio do que realmente nos percebermos e lidarmos com o mundo em toda a sua complexidade.  

A saída

Em outra metáfora animal de Assim Falou Zaratustra , Nietzsche traça um caminho de auto superação pelo qual um indivíduo pode transcender os valores reativos do cordeiro e aprender a aceitar e integrar suas verdadeiras motivações e contradições. Primeiro, é preciso tornar-se um camelo, aceitando e suportando o fardo de quaisquer tradições, normas e valores morais impostos pela sociedade. O camelo deve envolver-se ativamente com estes valores, porque só depois de os compreender profundamente é que se pode reconhecer exatamente o que deve ser superado. O próprio Nietzsche estudou teologia profundamente antes de lançar sua crítica ao Cristianismo.

Em seguida, é preciso tornar-se um leão, com força para se rebelar contra os antigos valores e criar uma liberdade dentro da qual novos valores possam ser formados. Mas, tal como os cordeiros, o leão não pode criar novos valores simplesmente opondo-se aos antigos. Para fazer isso, o leão deve tornar-se uma criança, que é inocente, brincalhona e esquecida, e tem a capacidade de inventar novos valores, novas perspectivas e novas visões positivas do futuro – “um Santo Sim”. Ao contrário do cordeiro, a criação de valores pela criança é proativa em vez de reativa, e enraizada na afirmação da sua própria existência, em vez de na oposição a outra coisa.

O mundo em que devemos navegar é complexo e cheio de contradições. Reversões morais simplistas parecem satisfatórias e fortalecedoras, mas não conseguem inspirar um caminho positivo a seguir. O mundo está cheio de forças nocivas e opressivas que devem ser combatidas, mas se deixarmos que esta oposição nos defina, impediremos qualquer possibilidade de construir um futuro que afirme o mundo tal como ele é, em toda a sua riqueza e complexidade. 

Este processo não é fácil ou estereotipado – a transformação de Nietzsche nunca é completa – mas uma luta contínua de autoexame honesto e reinvenção. Como declarou Nietzsche : “’Este é agora o meu caminho, onde está o seu?’ Assim respondi àqueles que me perguntaram ‘o caminho’. A propósito – isso não existe!


Ben Turtel é o fundador e CEO da Kazm, uma plataforma de gamificação como serviço. Ele também assessora startups por meio do The Garage at Northwestern e escreve sobre filosofia e tecnologia.

Artigo originalmente publicado em Quillette.