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A jornada do belo: da beleza ao sublime

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Edmund Burke (1729-1797), filósofo e político anglo-irlandês do século XVIII, deixou uma marca indelével na estética.

Nascido em Dublin, Irlanda, em 12 de janeiro de 1729, Burke era filho de um advogado protestante e uma mãe católica. Estudou no Trinity College de Dublin e, posteriormente, mudou-se para Londres, onde abandonou os estudos de Direito para se dedicar à carreira literária e viajar pela Europa. Em 1765, entrou para a política como secretário do Marquês de Rockingham, líder do Partido dos Whigs. Defendeu o papel dos partidos políticos na limitação do poder do rei e apoiou as reivindicações das colônias inglesas. Além disso denunciou injustiças da administração inglesa na Índia.

Escreveu “Reflexões Sobre a Revolução Francesa” (1790), condenando os excessos da revolução como um marco da ignorância e brutalidade, com fortes críticas à execução de “homens bons”, incluindo o cientista Antoine Lavoisier.

Mas foi com a sua obra “Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e da Beleza” que Burke explorou as origens psicológicas do sublime e da beleza, oferecendo insights profundos sobre a experiência estética e a natureza humana.

O belo

Para Burke, o belo é aquilo que é bem-formado e esteticamente agradável. Ele reside na harmonia, na proporção e na serenidade. Quando nos deparamos com algo bem-formado e esteticamente agradável, experimentamos um prazer que nos acalma.

A harmonia é como uma melodia suave que acalma nossos sentidos. Ela nos envolve em uma sensação de equilíbrio e ordem. A proporção, por sua vez, nos lembra que existe uma relação perfeita entre as partes, criando uma sensação de completude.

Imagine um jardim bem cuidado, com flores dispostas em proporções equilibradas, cores harmoniosas e uma atmosfera serena. Esse cenário nos traz prazer, nos conecta à natureza e nos permite escapar momentaneamente das preocupações cotidianas.

O belo, para Burke, não é apenas superficial; é uma experiência que transcende o imediato. Ele nos convida a contemplar algo maior, a encontrar significado na simplicidade e a apreciar a ordem subjacente ao mundo.

Ao buscarmos o belo, encontramos não apenas prazer estético, mas também uma conexão com o sublime da existência humana .

O sublime

O sublime pode ser compreendido como uma experiência que transcende o cotidiano. Ele nos atinge profundamente, como um trovão que ecoa nos confins da alma. Quando nos deparamos com o sublime, sentimos uma intensidade que nos arrebata.

Imagine estar no topo de uma montanha, olhando para um abismo profundo. A vastidão do cenário, a imensidão do espaço, tudo isso nos envolve em uma sensação de pequenez e admiração. O sublime nos faz confrontar nossa própria finitude e insignificância diante da grandiosidade do mundo.

Mas o sublime também pode ser assustador. Ele nos desafia a sair da zona de conforto, a enfrentar o desconhecido. É como estar à beira de um precipício, com o coração acelerado e os sentidos aguçados. O sublime nos coloca de frente ao abismo e nos faz questionar sobre a nossa própria existência.

Em obras de arte, como pinturas ou literatura, o sublime é frequentemente representado por tempestades, montanhas imponentes, o oceano em fúria. Essas imagens nos lembram da força da natureza e da nossa própria fragilidade e pequenez.

O sublime nos desafia a ir além do que é familiar, a explorar o desconhecido e a encontrar significado na vastidão do mundo. Ele nos convida a transcender nossos limites e a contemplar algo maior do que nós mesmos.

O belo versus o sublime

A grande contribuição de Edmund Burke reside na distinção clara entre duas experiências estéticas: o belo e o sublime. Esses dois conceitos, embora relacionados, evocam respostas distintas em nós.

O belo nos traz prazer. É aquilo que é bem-formado, harmonioso e esteticamente agradável. Quando contemplamos algo belo, experimentamos uma sensação de calma e satisfação. Pode ser uma paisagem serena, uma melodia suave ou uma obra de arte equilibrada.

Por outro lado, o sublime é algo que nos afeta visceralmente. Ele transcende o prazer e nos leva a um território mais profundo. O sublime está ligado a sensações de intensidade, grandiosidade e, muitas vezes, medo, envolvendo uma experiência que vai além do simples prazer.

O sublime nos confronta com o desconhecido, com o incontrolável. Pode ser a força de uma tempestade, a imponência de uma cachoeira ou a vastidão do oceano. Essas experiências nos lembram da nossa pequenez diante da natureza e da grandeza do mundo.

O sublime está ligado à vastidão, à grandeza e à profundidade. Ele nos compela a olhar para além do nosso eu individual, a enfrentar o desconhecido e a questionar nossa própria existência. O sublime é uma jornada emocional que nos leva a lugares inexplorados e nos faz sentir vivos.

Impacto e Influência

Edmund Burke transcendeu as divisões partidárias. Ele é considerado um símbolo tanto dos conservadores quanto dos liberais. Sua abordagem equilibrada e sua ênfase na tradição e na moderação atraíram seguidores de diferentes correntes políticas.

De um modo geral Burke valorizava a complexidade da experiência humana, acreditando que a tradição era essencial para a estabilidade social. Sua defesa da moderação e da empatia como pilares da sociedade influenciou o pensamento político e filosófico, alertando contra mudanças radicais e defendendo sempre a evolução gradual.

Uma das suas principais visões era a definição de liberdade como um direito, mas também enfatizava a necessidade de ordem para evitar o caos.

Seu legado está presente em debates sobre conservadorismo, liberalismo e ética, sempre pela busca do equilíbrio entre liberdade e ordem continua, tão relevantes em nossa sociedade atual. A doutrina de Burke influenciou escritores, pintores e críticos. Grandes nomes como Wordsworth, Thomas Hardy e Kant assimilaram suas perspectivas.

A obra de Burke não apenas enriquece a estética moderna, mas também revela seu entrecruzamento com o pensamento político e humano. O poder da arte e a arte de exercer o poder estão intrinsecamente ligados.

O autor nos lembra que a vida não é em preto e branco. Ela é repleta de nuances, tradições e desafios. Seu legado nos convida a buscar o equilíbrio entre a liberdade individual e a responsabilidade coletiva, valorizando a riqueza da experiência humana.

Para saber mais:

IoP

Sobre verdade e beleza

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Foto: Stephanie Klepacki/Unsplash

Para minha grande surpresa , outro dia me peguei lendo uma lista do Buzzfeed. A peça: “Tipos de corpo ideais das mulheres ao longo da história”. O conteúdo: diversas imagens de um elenco diversificado de modelos mostrando como os padrões de beleza mudaram ao longo do tempo.

Uma das primeiras coisas que me impressionou ao ler o artigo foi que, embora os padrões de beleza feminina pareçam ter mudado ao longo do tempo (embora não muito – quase todos os modelos eram magros), é curioso que a forma masculina ideal não tenha mudado. De forma alguma O David de Michelangelo é tão bonito em 2017 quanto era em 1517 e pode esperar que o seja em 2517.

Estatueta Feminina, Egito. Cerca de 3500 – 3400 a.C.

Aprendi que os antigos egípcios acreditavam que cabelos longos trançados eram um aspecto importante da beleza feminina. As tranças “emolduravam um rosto simétrico”, e as mulheres mais desejadas eram esguias, com cintura alta e ombros finos. (O modelo do “Egípcio Antigo” era afro-americano, embora seja mais provável que os Antigos Egípcios se parecessem com outros povos mediterrâneos).

Esperava-se que as mulheres chinesas da Dinastia Han (c.206 AC – 220 DC) tivessem longos cabelos pretos, lábios vermelhos e dentes brancos, entre outras coisas. Mas também na lista estava a pele pálida e, a menos que você viva debaixo de uma rocha desde a década de 1960, saberá que não faltam intelectuais que atribuíram o desejo de ter uma pele pálida aos efeitos nefastos do colonialismo. Que a sua presença era um critério de beleza há muito tempo (e tão longe da Europa) como a China Han diz, para dizer o mínimo.

Em seguida veio a beleza da Itália renascentista, exemplificada por um “corpo arredondado, incluindo quadris cheios e seios grandes”. A modelo era realmente corpulenta e sua presença servirá como uma espécie de garantia para quem hoje se considera acima do peso.

Ticiano, Vênus e o tocador de alaúde, ca. 1565–70

O protótipo da Renascença foi o único modelo assim; o restante era comparativamente magro, sugerindo fronteiras para a subjetividade humana no que diz respeito à massa corporal. Não quero insistir na ideia de que os padrões de beleza mudam com o tempo, mas farei um breve resumo dos outros. Na Inglaterra vitoriana, quanto menor a cintura, melhor. As mulheres andróginas eram populares na década de 1920. As belezas da década de 1950 tinham figuras “curvilíneas”. Supermodelos atléticas e rechonchudas definiram a década de 1980, as heroínas chiques abandonaram a década de 1990. Finalmente chegamos aos dias de hoje, onde nos dizem que as mulheres devem “ser magras, mas saudáveis, e ter seios grandes e bunda grande, mas barriga lisa”.

Há uma série de insights reveladores sobre o pensamento pós-moderno do artigo. Considere a seguinte frase: “As mulheres na década de 2000 foram bombardeadas com tantos requisitos diferentes de atratividade”. Não há relativismo aqui: as mulheres modernas estão sendo atacadas por um conjunto de exigências sem precedentes, singularmente desconcertantes e inatingíveis. Mas serão os padrões aos quais as mulheres aspiram hoje menos acessíveis do que os que as mulheres enfrentaram no passado? Esperava-se que as mulheres na China Han tivessem pele branca em uma época de agricultura onipresente de arrozais, e dentes perfeitos em uma época anterior à odontologia em qualquer forma reconhecível. Para ter bons dentes na Idade do Ferro era preciso acertar na loteria genética dos dentes. Você tinha que ter muita sorte.

As exigências supostamente colocadas às mulheres modernas, conforme afirmado no artigo, são altamente suspeitas. O desejo de um “bumbum grande” dificilmente é universal hoje em dia, embora a maioria concorde que a magreza é uma característica considerada positiva pela maioria dos homens e mulheres. Ao nos informar sobre os diversos padrões de beleza ao longo da história, imagino que seja intenção do autor nos informar sobre a subjetividade da beleza; que é relativo ao tempo e ao espaço. Mas não é essa a impressão que temos ao ler o artigo. Os ideais das sociedades anteriores são elucidados e não são vagos e incipientes, mas autoritários e plenamente formados. Os egípcios, gregos e vitorianos sabiam do que gostavam. Para nossos ancestrais distantes, a beleza não era subjetiva.

O comentário mais bem avaliado do artigo afirma que “somos todos lindos” e observa a inconstância dos padrões de beleza da humanidade. Mas esta afirmação só é verdadeira se vivermos numa civilização caótica com um sentido estético debilitado – algo que pode muito bem ser o caso neste momento. A nossa atual percepção do mundo – a nossa própria verdade moderna – é rejeitada por pessoas para quem a realidade é apenas uma opinião. Não é de admirar que o cidadão comum fique confuso com a arte moderna. Se tudo é belo então nada é.

Existe a suposição culturalmente destrutiva de que os padrões atuais são imutáveis, mas não são. Eles também serão vítimas dos caprichos estéticos da humanidade.

Espera-se que o ocidental moderno (a estética de outras civilizações não está sob ataque) olhe para uma variedade de formas e tamanhos corporais, admire todos eles e veja cada um como igualmente atraente. Mas a ciência teve um impacto profundo na nossa compreensão da beleza, na medida em que a medicina moderna nos informa sobre os efeitos devastadores da obesidade na saúde humana.

Pessoas de todas as idades têm padrões de beleza exclusivos. Cinturas minúsculas eram lindas para os vitorianos, a obesidade feminina é linda para os mauritanos contemporâneos, a pele branca era (e ainda é) bonita para os chineses. Essas eram as suas verdades. Somente aos ocidentais modernos é dito que não podem abraçar a sua própria verdade, que a sua estética está errada, que literalmente todas as mulheres no mundo são bonitas.

Sir Roger Scruton disse uma vez – e estou parafraseando aqui – que qualquer pessoa que diga que não existem verdades ou que toda verdade é “meramente relativa” está pedindo para não ser acreditado.

Então não acredite neles.


Derek Hopper é um escritor irlandês e vive em Bangkok.

Fonte: Quillette

Para além do relativo: A importância da beleza

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Desde os primórdios da humanidade, o conceito de beleza tem sido objeto de profunda reflexão e contemplação por parte de filósofos em busca de compreensão e significado. Aristóteles, Platão, David Hume, Immanuel Kant, Roger Scruton, São Tomás de Aquino e Edmund Burke são alguns dos pensadores que contribuíram significativamente para essa discussão ao longo dos séculos.

Antes de tudo é crucial compreendermos a importância desse conceito em nossa vida cotidiana. A beleza, em sua essência, transcende a mera estética; ela é intrínseca à nossa experiência humana, influenciando nossas percepções, emoções e interações com o mundo ao nosso redor. A busca pela beleza não se restringe apenas à apreciação de obras de arte ou paisagens naturais deslumbrantes; ela permeia todas as esferas da existência, desde a maneira como nos relacionamos com os outros até como percebemos a nós mesmos.

No entanto, é inegável que ao longo do tempo, o conceito de beleza tem sido submetido a uma série de transformações e deturpações, especialmente sob a ótica da arte contemporânea. Roger Scruton, em sua obra “Beleza: Ato desinteressado”, argumenta que a arte contemporânea muitas vezes abandonou a busca pela beleza em favor de uma busca por chocar e provocar, negligenciando assim a importância fundamental da estética e do encantamento na experiência humana.

Diante desse contexto, torna-se importante revisitar os conceitos clássicos de beleza propostos pelos filósofos mencionados anteriormente e refletir sobre sua relevância em um mundo onde a estética é frequentemente relegada a segundo plano. Afinal, o que podemos aprender com Aristóteles sobre a harmonia e proporção, com Platão sobre a beleza como manifestação do divino, com Kant sobre a beleza como experiência desinteressada, com São Tomás de Aquino sobre a beleza como reflexo da ordem divina e com Edmund Burke sobre a beleza como fonte de prazer e sublimidade?

Os conceitos clássicos de beleza

Aristóteles, em sua obra “Ética a Nicômaco”, argumenta que a beleza está intrinsecamente ligada à ideia de proporção e harmonia. Para o filósofo grego, a beleza é encontrada na perfeição das formas e na simetria dos objetos, refletindo a ordem e a regularidade presentes na natureza e no universo. Essa concepção aristotélica de beleza sugere que a estética é uma manifestação da própria estrutura do cosmos, proporcionando uma sensação de equilíbrio e plenitude ao observador.

Platão, por sua vez, concebia a beleza como uma forma transcendental, uma ideia eterna e imutável que transcende o mundo sensível. Em seu diálogo “O Banquete”, Platão descreve o “Belíssimo” como o objeto de desejo supremo, capaz de conduzir o indivíduo à contemplação das formas ideais e à busca pela perfeição moral. Nessa perspectiva platônica, a beleza é mais do que uma mera qualidade estética; ela é uma porta de entrada para o conhecimento e a verdade.

David Hume, filósofo empirista do século XVIII, abordou a beleza de uma maneira mais subjetiva, argumentando que ela reside na mente do observador. Para Hume, a beleza é uma qualidade que desperta sentimentos de prazer e satisfação, derivados da percepção de ordem, proporção e harmonia. Essa abordagem subjetiva da beleza destaca a importância das experiências individuais na apreciação estética e reconhece a diversidade de gostos e preferências.

Immanuel Kant, em sua “Crítica da Faculdade do Juízo”, distingue entre o belo e o sublime, atribuindo à beleza uma dimensão universal e desinteressada. Para Kant, a experiência do belo é caracterizada por uma sensação de prazer desinteressado e uma apreciação puramente estética, desvinculada de interesses pessoais ou utilitários. Essa concepção kantiana de beleza enfatiza sua capacidade de transcender as limitações do indivíduo e unir diferentes perspectivas em torno de um objeto ou obra de arte.

São Tomás de Aquino, influenciado pela filosofia de Aristóteles, concebia a beleza como uma manifestação da ordem divina e uma expressão da perfeição de Deus. Para Aquino, a beleza está intimamente ligada à bondade e à verdade, refletindo a harmonia e a integridade presentes na criação divina. Essa visão teológica da beleza ressalta sua importância como uma via de acesso ao divino e uma fonte de inspiração espiritual.

Edmund Burke, por fim, explorou a beleza como uma fonte de prazer e sublimidade, capaz de evocar sentimentos de admiração e reverência. Em sua obra “Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo”, Burke distingue entre o belo, associado à suavidade e à delicadeza, e o sublime, associado à grandeza e à grandiosidade. Para Burke, a experiência estética é uma forma de escapismo e elevação, permitindo ao indivíduo transcender as preocupações mundanas e entrar em contato com o sagrado e o transcendental.

A deturpação contemporânea da beleza

Embora os conceitos clássicos de beleza propostos por filósofos como Aristóteles, Platão, Kant e outros tenham resistido ao teste do tempo, é inegável que a noção de beleza foi gradualmente desafiada e subvertida no contexto da arte contemporânea. O movimento moderno, com sua ênfase na originalidade, subjetividade e transgressão, levou a uma rejeição dos padrões estéticos tradicionais em favor de uma estética dita experimental e provocativa.

Roger Scruton, em sua crítica à arte contemporânea, argumenta que muitos artistas abandonaram a busca pela beleza em prol da busca por choque e confronto. Sob a influência do movimento pós-moderno, a arte tornou-se cada vez mais abstrata, conceitual e muitas vezes desconectada do público em geral. Em vez de inspirar admiração e encantamento, muitas obras de arte contemporânea provocam desconforto, confusão e até mesmo repulsa.

Essa deturpação da beleza na arte contemporânea pode ser atribuída a uma série de fatores. Em primeiro lugar, o desejo de romper com as tradições estéticas do passado levou os artistas a desafiar as noções convencionais de beleza e propor novas formas de expressão artística. Em segundo lugar, a crescente comercialização e mercantilização da arte incentivou a busca por obras escandalosas e controversas que atraiam a atenção da mídia e do mercado.

Além disso, a influência da crítica de arte e dos círculos intelectuais também desempenhou um papel importante na promoção de uma estética mais conceitual e provocativa. Muitos críticos e curadores de arte passaram a valorizar a originalidade, a transgressão e a inovação em detrimento da beleza tradicional, contribuindo assim para a marginalização da estética clássica em favor de uma estética mais subversiva e desafiadora.

Essa deturpação contemporânea da beleza levanta questões importantes sobre o papel da arte na sociedade e o significado da estética em nossas vidas. Será que a busca pelo choque e pela originalidade a todo custo realmente enriquece nossa experiência estética e nos aproxima da verdadeira beleza? Ou será que estamos perdendo de vista o verdadeiro propósito da arte, que é inspirar, elevar e enriquecer nossas vidas?

Resgatando a importância da beleza clássica

Diante da deturpação contemporânea da beleza na arte e na cultura, é imperativo resgatarmos a importância dos conceitos clássicos de beleza propostos por filósofos como Aristóteles, Platão, Kant e outros. A beleza, longe de ser uma mera questão de preferência ou convenção cultural, é uma dimensão fundamental da experiência humana, capaz de nos conectar com o divino, inspirar admiração e elevar nossa alma.

Ao reconhecermos a beleza como uma qualidade transcendental, muito além das limitações do tempo e do espaço, podemos redescobrir sua capacidade de nos unir como seres humanos e nos elevar além das preocupações mundanas. Os conceitos clássicos de beleza nos convidam a contemplar a harmonia e a proporção, a buscar a perfeição moral e a reconhecer a presença do divino em nosso meio.

A importância da beleza atualmente reside não apenas em sua capacidade de nos encantar e inspirar, mas também em sua capacidade de nos conectar com o transcendental e nos lembrar da nossa humanidade compartilhada. Que possamos, portanto, buscar a beleza em todas as suas formas e reconhecer sua presença em nossas vidas, agora e sempre.

IoP

Por que a beleza importa?

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Em meio ao turbilhão de questionamentos sobre a busca pela beleza na contemporaneidade, um nome emerge com destaque: Sir Roger Vernon Scruton, filósofo britânico cuja dedicação às demandas do belo foram notórias.

Professor emérito das universidades de Boston e St. Andrews, além de membro da Sociedade Real de Literatura da Grã-Bretanha, Scruton se consagrou como um dos mais influentes pensadores atuais, seguindo os passos de figuras como Aristóteles e Edmund Burke, dentre outros. Sob a ótica conservadora, a beleza não é apenas uma estética, mas uma necessidade vital para a existência humana, uma vez que ela confere significado e continuidade à vida.

O pensamento conservador, muitas vezes mal compreendido, encontra em Scruton um de seus mais sólidos defensores, entendendo a vida em sociedade como uma parceria entre os vivos, os mortos e os que estão por nascer. Essa visão fundamentou sua filosofia, especialmente no que diz respeito à arte e à arquitetura. Para Scruton, a arte não é apenas uma expressão estética, mas uma fonte de significado que conecta as pessoas ao sagrado e ao transcendente.

O Sublime e o Belo de Edmund Burke

Edmund Burke abordou indiretamente o tema da beleza em sua obra mais conhecida, intitulada “Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo” (1757).

Em sua investigação, Burke explorou não apenas o sublime, mas também o belo, embora o sublime seja o foco principal do texto. Ele discutiu as sensações que surgem em nós diante de certos objetos naturais ou situações, e como essas sensações nos afetam emocionalmente.

Burke descreveu o belo como algo que nos traz prazer suave e agradável, enquanto o sublime foi associado a sensações mais intensas e até mesmo aterrorizantes. Ele argumentou que o belo está relacionado à simetria, à harmonia e à proporção, elementos que nos proporcionam uma sensação de prazer estético, comumente encontrado nas formas naturais. Assim, mesmo que sua obra principal se concentrou mais no sublime, Burke ofereceu insights valiosos sobre a natureza e os efeitos da beleza, influenciando significativamente o pensamento de Scruton.

A Essência do Ser Humano

Ao explorar temas como a natureza humana, a política, a religião e o sexo, Scruton não apenas levantou questões conceituais, mas também as examinou sob uma perspectiva prática. Seu compromisso em investigar a essência do ser humano e sua relação com o mundo refletiu um viés socrático em seu discurso, afinal buscava não apenas compreender, mas também guiar o homem contemporâneo na busca pelo que é verdadeiro, bom e belo.

Um dos pontos mais contundentes em que Roger Scruton confronta a arte contemporânea é sua crítica à perda de beleza e significado. Scruton argumenta que muitas manifestações artísticas contemporâneas, especialmente aquelas associadas ao movimento pós-moderno, abandonaram os valores tradicionais de estética em favor de uma abordagem que privilegia o choque, o escândalo e o conceitualismo vazio.

Kitsch e metakitsch

Para Scruton, a arte contemporânea frequentemente abraça o que ele chama de “kitsch” e “metakitsch“, termos que ele utiliza para descrever a produção massificada de obras sem valor estético ou substância significativa. Ele critica o relativismo cultural que permeia muitas interpretações da arte atual, onde qualquer objeto pode ser considerado arte, independentemente de sua habilidade, originalidade ou apelo estético.

Kitsch é um termo usado para se referir a obras de arte, objetos ou produções culturais que são consideradas de mau gosto, pretensiosas ou excessivamente sentimentais. O kitsch geralmente apela para emoções superficiais e clichês, muitas vezes explorando temas como romantismo exagerado, nostalgia barata ou idealizações simplistas da realidade.

Por outro lado, metakitsch é uma extensão, uma abordagem de como o kitsch é percebido, criticado ou incorporado à cultura contemporânea. O metakitsch pode envolver uma reflexão consciente sobre os elementos kitsch em uma obra de arte ou uma abordagem irônica em relação ao próprio conceito de kitsch.

A epidemia do kitsch não se limita apenas à arte, mas também se estende à arquitetura contemporânea e ao design. Scruton lamenta a massificação estética e a falta de beleza nas construções modernas, na comunicação e no design que privilegiam a funcionalidade em detrimento da estética. Para ele, a arquitetura e o design devem refletir a identidade e o pertencimento das pessoas, proporcionando um ambiente que inspire harmonia e beleza.

Em meio a esse panorama, Scruton não apenas critica, mas também propõe soluções. Sua participação em iniciativas governamentais, como a comissão “Building Better, Building Beautiful”, demonstrou seu compromisso em promover a beleza e a qualidade de vida através da arquitetura. Para Scruton, estimar o belo é essencial para preservar não apenas a estética, mas também os valores fundamentais da humanidade.

Em última análise, podemos compreender que o legado de Roger Scruton é um lembrete de que a beleza não é um luxo, mas uma necessidade humana. Suas reflexões nos convidam a reavaliar nosso relacionamento com o belo e a buscar uma vida que seja verdadeiramente significativa e esteticamente enriquecedora. A beleza está ao nosso redor, esperando para ser descoberta e apreciada. É tempo de redescobrir a beleza perdida e permitir que ela guie nossas vidas rumo a um futuro mais luminoso e inspirador.

Aristóteles e “A Poética”

Aristóteles, em “A Poética”, analisou a tragédia grega e definiu elementos fundamentais da arte dramática, como a imitação, a catarse e a estrutura narrativa. Ele discutiu a importância da trama, dos personagens e do estilo na composição de uma obra de arte, enfatizando a necessidade de uma representação verossímil da realidade.

Scruton também compartilhou com Aristóteles uma profunda apreciação pela beleza e uma compreensão da arte como uma expressão essencial da condição humana. Ambos os pensadores reconheceram a importância da arte na busca pela verdade e no enriquecimento da experiência humana.

Expandindo os princípios estéticos de Aristóteles para o contexto contemporâneo, Scruton abordou questões como a decadência da arte e a necessidade de preservar a tradição e a beleza nas produções artísticas. Enquanto Aristóteles se concentrou principalmente na tragédia e na poesia épica, Scruton ampliou o escopo de sua análise para incluir diversas formas de arte, da música à arquitetura.

Ambos compartilham uma abordagem filosófica que valorizava a contemplação e a busca pelo entendimento do mundo. Os pensadores reconheceram a importância da reflexão sobre a arte e a estética para uma compreensão mais profunda da condição humana.

Muitas das manifestações artísticas contemporâneas, especialmente aquelas associadas ao pós-modernismo, haviam abandonado os valores tradicionais da estética em favor de uma abordagem que privilegiava o choque, o escândalo e o conceitualismo vazio. Scruton defendia a importância da beleza na arte e na arquitetura como algo que não apenas enriquece a vida humana, mas também reflete os valores fundamentais da humanidade.

Para o filósofo, a arte deveria aspirar à transcendência e à conexão com o sagrado, em vez de se afundar na negatividade e na desesperança, ou seja, a beleza realmente importa!

Scruton produziu vários documentários sobre a beleza. Disponibilizamos um deles como material complementar a este artigo:


IoP

Cuidado com os cordeirinhos

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Numa entrevista recente, Elon Musk observou que os valores americanos se inverteram, passando de “o poder torna correto quem o tem” para a oposição à força e considerando a fraqueza como uma virtude:

Realmente, o círculo completou-se do que tem sido historicamente o caso. Durante a maior parte da história, o princípio tem sido “o poder torna correto quem o tem”. … Agora, meio que mudamos para “se você é mais fraco, você está certo”. Mas nada disso é verdade. Existe justiça independente de força ou fraqueza. Só porque alguém é forte não significa que esteja certo, e só porque alguém é fraco não significa que esteja certo.

Musk parece estar apontando para um exemplo de uma tendência mais ampla em nossa sociedade, onde é cada vez mais comum definir-se – ou um movimento, campanha, sistema de valores – em oposição ou como uma reversão de algo em vez de em direção a algo positivo em si mesmo. certo. 

Vemos isto em todos os cantos do nosso discurso político: anticapitalismo, anti-wokeismo, anti-racismo, anti-sionismo, anti-fascismo, anti-imigração, never-Trump, cultura do cancelamento, antivax, techlash. O problema não é que estas posições sejam necessariamente incoerentes ou erradas, mas quando adotadas na ausência de valores positivos – sem uma inspiração interna que nos mova em direção a um mundo possível em detrimento de outro – perdemos a capacidade de lidar com a complexidade, de formar perspectivas diferenciadas, ou traçar um caminho do nosso mundo imperfeito para um mundo melhor.

Grandes aves de rapina e cordeirinhos

Nietzsche escreveu extensivamente sobre como os humanos podem ficar presos em um binário moral simplista e, em particular, sobre os perigos de definir os próprios valores em oposição a outra coisa. Ele descreve dois tipos de formação de valor, representados pelas “grandes aves de rapina” e pelos “cordeirinhos”.

As grandes aves de rapina criam valores espontaneamente como consequência direta de sua própria experiência. Um pássaro “concebe a ideia básica de ‘bom’ por si mesmo, antecipadamente e espontaneamente, e só então cria uma noção de ‘ruim’” – os valores positivos dos pássaros são primários, e “ruim” surge apenas como uma reflexão tardia. É “bom” comer os cordeirinhos saborosos porque são deliciosos, então não poder fazer isso é “ruim”. Não há necessidade de apelar para uma moralidade universal – o pássaro pesa o mundo em relação às suas inclinações naturais.

Os cordeirinhos, por outro lado, são fracos e oprimidos pelos pássaros e, como consequência de sua fraqueza, não conseguem perceber valores positivos dentro de si. Em vez disso, desenvolvem o que Nietzsche chamou de ressentimento – um ódio vingativo contra os seus opressores, e isto se torna a base dos seus valores. Ao contrário dos pássaros, faltam-lhes valores próprios, por isso os cordeiros não julgam os pássaros em relação a si próprios e ao seu “bem”. Num ato criativo de autoengano, eles transformam o seu ódio pelos seus opressores num padrão externo ou valor universal pelo qual podem julgar os pássaros. Como disse Nietzsche :

O que eles odeiam não é seu inimigo, oh não! Eles odeiam a “injustiça”, a “impiedade”; o que eles acreditam e esperam não é a perspectiva de vingança, o delírio da doce vingança, mas a vitória de Deus, o Deus justo, sobre os ímpios.

Nietzsche usa “Deus” aqui, mas poderíamos facilmente trocar qualquer apelo à moralidade universal: direitos humanos, valores familiares, igualdade, justiça ou equidade.

Para os cordeiros, o mal é o fundamento da sua moralidade, e o bem é a reflexão tardia. Os cordeiros dizem uns aos outros: “Essas aves de rapina são más; e quem é menos parecido com uma ave de rapina e mais parecido com o seu oposto, um cordeiro, é bom, não é? Os pássaros, por outro lado, não se importam nem um pouco com os cordeiros. Eles dizem: “não guardamos nenhum rancor desses bons cordeiros; na verdade, nós os amamos, nada é mais saboroso do que um cordeiro tenro”. A moralidade fabricada dos cordeiros permite-lhes convencerem-se de que são dignos, justos e felizes. Quando usado para manipular outras pessoas, torna-se a fonte de poder de um cordeiro.

Nietzsche não está dizendo que as grandes aves de rapina sejam boas e que os cordeirinhos sejam maus. Mas ele encoraja-nos a abraçar a complexidade, a ver além do binário opressor/oprimido e a evitar a glorificação acrítica dos oprimidos. Os pássaros podem estar oprimindo os cordeiros, e os cordeiros têm todos os motivos para revidar. O problema para os cordeiros é que, por acreditarem que a virtude e a auto realização residem em serem o oposto de um pássaro, são impedidos de fazer o trabalho necessário para se tornarem algo digno do seu próprio respeito. O autoengano leva ao apego à própria miséria em vez de superá-la – “eles me dizem que sua miséria significa que são os escolhidos de Deus”.

Um caminho mais autêntico e frutífero seria reconhecer as próprias deficiências e dizer claramente: “Nós, pessoas fracas, somos simplesmente fracos; é bom não fazer nada para o qual não sejamos fortes o suficiente.” Só então poderão passar por um processo de auto superação que permita o nascimento de valores positivos.

Cordeiros Modernos

A tendência humana para o ressentimento e a sua expressão criativa como uma inversão de valores opressores não é nova. Sobre a genealogia da moralidade foi publicado originalmente em 1887, e a ideologia que Nietzsche atacou foi o cristianismo. Certos aspectos da modernidade alimentam a insatisfação e a inveja que levam a definir-se em oposição. Os algoritmos das redes sociais amplificam as vozes de queixa, vitimização e indignação. A cultura do consumo motiva potenciais compradores com apelos à inveja e à insatisfação. Políticos de todos os matizes motivam os eleitores com apelos ao ódio contra um suposto opressor – capitalistas ricos e gananciosos na esquerda, esnobes globalistas de elite na direita.  

Num mundo imperfeito, é mais fácil criticar soluções do que fazer escolhas pragmáticas que exijam escolher a opção menos pior e fazer sacrifícios ao longo do caminho para um futuro mais positivo. É mais fácil protestar do que superar-se e inventar criativamente novos valores que possibilitem navegar no mundo real. Para além de manter os indivíduos presos ao ressentimento e à indignação, esta moralidade reativa pode ser usada para justificar atos de brutalidade dirigidos a um aparente opressor, ao mesmo tempo que mascara a verdadeira motivação por detrás de tais atos. Assumir uma identidade de “oprimidos” torna mais fácil para os coletivos tolerar comportamentos que de outra forma seriam obviamente desagradáveis.

Hoje, vemos essa mentalidade em todos os lugares. Os progressistas exigem que os trabalhadores da classe média percam os seus empregos por causa de uma piada de mau gosto nas redes sociais; Os republicanos defendem os piores erros do seu líder em nome de “revidar” a elite; os anticolonialistas defendem a violação e o assassinato de civis israelitas pelo Hamas em nome da “resistência”; os supremacistas brancos justificam a violência e o ódio em retaliação pela “substituição”; Stalin procurou libertar a Rússia das conspirações dos capitalistas burgueses e dos imperialistas; Hitler acreditava que estava lutando contra uma conspiração judaica global.

É mais fácil preencher o vazio com indignação, inveja e ódio do que realmente nos percebermos e lidarmos com o mundo em toda a sua complexidade.  

A saída

Em outra metáfora animal de Assim Falou Zaratustra , Nietzsche traça um caminho de auto superação pelo qual um indivíduo pode transcender os valores reativos do cordeiro e aprender a aceitar e integrar suas verdadeiras motivações e contradições. Primeiro, é preciso tornar-se um camelo, aceitando e suportando o fardo de quaisquer tradições, normas e valores morais impostos pela sociedade. O camelo deve envolver-se ativamente com estes valores, porque só depois de os compreender profundamente é que se pode reconhecer exatamente o que deve ser superado. O próprio Nietzsche estudou teologia profundamente antes de lançar sua crítica ao Cristianismo.

Em seguida, é preciso tornar-se um leão, com força para se rebelar contra os antigos valores e criar uma liberdade dentro da qual novos valores possam ser formados. Mas, tal como os cordeiros, o leão não pode criar novos valores simplesmente opondo-se aos antigos. Para fazer isso, o leão deve tornar-se uma criança, que é inocente, brincalhona e esquecida, e tem a capacidade de inventar novos valores, novas perspectivas e novas visões positivas do futuro – “um Santo Sim”. Ao contrário do cordeiro, a criação de valores pela criança é proativa em vez de reativa, e enraizada na afirmação da sua própria existência, em vez de na oposição a outra coisa.

O mundo em que devemos navegar é complexo e cheio de contradições. Reversões morais simplistas parecem satisfatórias e fortalecedoras, mas não conseguem inspirar um caminho positivo a seguir. O mundo está cheio de forças nocivas e opressivas que devem ser combatidas, mas se deixarmos que esta oposição nos defina, impediremos qualquer possibilidade de construir um futuro que afirme o mundo tal como ele é, em toda a sua riqueza e complexidade. 

Este processo não é fácil ou estereotipado – a transformação de Nietzsche nunca é completa – mas uma luta contínua de autoexame honesto e reinvenção. Como declarou Nietzsche : “’Este é agora o meu caminho, onde está o seu?’ Assim respondi àqueles que me perguntaram ‘o caminho’. A propósito – isso não existe!


Ben Turtel é o fundador e CEO da Kazm, uma plataforma de gamificação como serviço. Ele também assessora startups por meio do The Garage at Northwestern e escreve sobre filosofia e tecnologia.

Artigo originalmente publicado em Quillette.

Por que as coisas do governo são chamadas de “públicas”?

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As estruturas e serviços governamentais — que na verdade são desserviços em geral — são chamados de “públicos”, enquanto os serviços que respondem eficientemente ao público são chamados de “privados”. Por que isso?

Essa forma de enquadrar a distinção poderia ter como objetivo denegrir sutilmente o mercado, ou o “setor privado”, onde o lucro motiva “egoisticamente” as pessoas que, no processo, melhoram a vida de estranhos todos os dias. O histórico desse setor é visivelmente melhor do que o do “setor público”. Portanto, somos ensinados a acreditar que as motivações do governo são mais puras – a busca altruísta do “interesse público” por parte dos “funcionários públicos”. Isso supostamente os torna superiores aos que buscam o lucro, não importa quão eficazes sejam os verdadeiros produtores de riqueza – empresários, investidores, gestores e trabalhadores.

A escola de economia política da Escolha Pública estabeleceu a visão mais sensata de que as pessoas não se tornam moralmente superiores ao resto de nós quando assumem cargos públicos. São apenas pessoas, exceto que os incentivos perversos exclusivos do domínio político/burocrático diferem drasticamente dos incentivos produtivos que distinguem o domínio empresarial. Deveríamos chamar os detentores de cargos governamentais de auto-servidores “públicos” para expor esse fato básico. Eles podem ser sinceros nas suas racionalizações sobre ajudar as pessoas, mas isso não muda o que fazem – coagir as pessoas, a começar pelos pagadores de impostos. Em contraste, as pessoas no mercado precisam, em última análise, satisfazer os consumidores livres ou encontrar outra coisa para fazer.

Pense no que conhecemos como escolas públicas. Alguém já ouviu falar de uma escola que não fosse aberta ao público? Quem as frequenta? A Grã-Bretanha está mais perto da verdade. As escolas públicas são chamadas de “escolas privadas” e as escolas do governo são chamadas de “escolas estatais”. Dado que, para onde quer que se olhe, os pais têm de pagar pelo péssimo e caro sistema governamental, quer enviem ou não os seus filhos para lá, e muitos pais não se podem dar ao luxo de pagar duas vezes, poderíamos chamar às unidades do governo “escolas de recrutamento”.

Mas elas são chamados de “públicas” porque é ele quem as possui – teoricamente, mas não realisticamente.

Com outros “serviços públicos”, existe ainda menos escolha. Considere as utilidades públicas. A maioria das pessoas não consegue escolher as empresas de água, eletricidade e gás, embora isso não seja totalmente inédito. Desde que a concorrência apareceu em alguns lugares, estes chamados monopólios naturais não parecem tão naturais, afinal. Se a concorrência fosse legal em todos os lugares, tecnologias adequadas poderiam ter sido inventadas há muito tempo.

Encontramos alternativas ao governo de maneiras que podem parecer surpreendentes para alguns. Diz-se que dois centros insubstituíveis de governo são os tribunais para a resolução de disputas e a polícia para a segurança contra os malfeitores. Durante muito tempo, as pessoas procuraram resolver disputas de forma pacífica, sem os ineficientes e por vezes corruptos tribunais governamentais. Na Idade Média, comerciantes de todo o mundo comercializavam os seus produtos em feiras na Europa. Às vezes, surgiam divergências sobre contratos. Assim, os mercadores procuraram uma alternativa justa e eficiente às cortes dos príncipes locais. O resultado foi a complexa e espontânea Lei Mercante. As disputas surgidas sobre contratos, que na verdade criaram o direito privado para as partes, foram levadas perante pessoas que adquiriram reputação de serem sábias, justas e eficientes. Os comerciantes valorizavam tanto as resoluções rápidas que concordaram em não recorrer das decisões contra eles. Era mais importante passar para a próxima transação. O não cumprimento de uma decisão afastaria e limitaria oportunidades futuras.

O Lei Mercante era tão boa que evoluiu para o direito comercial sob o qual grande parte do mundo opera hoje. Podemos ver sinais disso na arbitragem privada, que hoje é um grande negócio. Muitos contratos que assinamos especificam que as divergências serão resolvidas em tribunais privados. Infelizmente, o governo dos EUA reivindica autoridade para anular as decisões dos árbitros com base em motivos vagos. Se isso fosse impossível, a arbitragem provavelmente seria ainda mais comum do que é hoje. O governo nunca irã competir de forma justa.

Da mesma forma, as empresas de segurança privada vigiam centros comerciais, fábricas, faculdades e outros estabelecimentos. Também é um grande negócio. Os “serviços” do governo são inadequados apesar dos elevados impostos, por isso as pessoas encontram alternativas e as empresas são totalmente responsabilizadas ​​quando cometem erros. Isso não acontece com a polícia do governo.

Quem é o dono das estruturas governamentais? A maioria das pessoas diria que numa democracia o público as possui. Mas isso realmente não é assim. Os membros do público não podem vender ou comprar ações ou fazer outras coisas que os verdadeiros proprietários fazem. Eles nunca consentiram em ser proprietários. Essa é apenas uma afirmação simbólica. Nos casos de propriedade real, as pessoas adquirem direitos de propriedade através de ações volitivas inequívocas que envolvem contratos com termos razoavelmente claros. O contrato social existe apenas na imaginação.

Os verdadeiros proprietários das estruturas governamentais não são aqueles que realmente as controlam? Pode ser quem tem autoridade para colocar placas de “proibição de invasão”, que adornam muitas propriedades “públicas”. (A propriedade privada também tem esses sinais, mas isso ocorre porque existem dois tipos de propriedade privada: a que está aberta ao público e a que não está, como as casas.)

Não deveríamos nos deixar enganar pelo fato de o povo poder votar em ocupantes de cargos públicos, que então, em teoria, atuam como agentes do povo. A responsabilização desses pseudo-agentes perante os chamados proprietários é virtualmente zero quando se considera como os políticos e burocratas podem facilmente desviar a atenção das más consequências das suas ações e/ou da sua culpabilidade por essas consequências. Além disso, um voto mal conta e as campanhas para realmente mudar as coisas são proibitivamente caras e sujeitas a problemas de parasitismo.

Em contraste, a responsabilização é poderosa na sociedade com fins lucrativos. A falência é uma ameaça sempre presente para empresas indiferentes e irresponsáveis, e a reputação impõe uma disciplina significativa. As partes lesadas também podem processar pessoas no mercado. Os processos contra o governo muitas vezes não são permitidos ou limitados.

É hora de abrir à concorrência tantas funções governamentais quanto possível. O que parece impossível hoje pode não parecer no próximo ano. Portanto, procuremos novos movimentos em direção a serviços melhores e mais baratos – para não falar em direção a liberdade.


Sheldon Richman é vice presidente da The Future of Freedom Foundation e editor da revista mensal Future of Freedom. Durante 15 anos foi o editor da The Freeman, publicada pela Foundation for Economic Education.

Fonte: Instituto Rothbart Brasil

A internet pode ser controlada?

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Estive no mês de janeiro de 2011 em Myanmar, também conhecido como Birmânia[1]. Surpreendi-me com essa terra de gente simples, governada por meio da repressão e do medo durante mais de 60 anos de uma junta militar cruel e opressiva.  Na Birmânia, celulares de estrangeiros não funcionam (não há roaming), cartões de crédito não são aceitos, e-mails são proibidos e, ao passo em que a taxa oficial de câmbio é de 6 kyats por dólar, a taxa no mercado livre é de 800 kyats por dólar.

Enquanto lá estive, li as notícias sobre a luta do povo da Tunísia contra o Estado policial lá vigente, e sobre como ativistas digitais utilizaram o Facebook e celulares para driblar a censura e organizar-se de forma decisiva para derrubar o ditador Ben Ali, surpreendendo o mundo.

Ao chegar ao Brasil há algumas semanas, conversei com meu amigo e vice-presidente do IEE, Ricardo Gomes, sobre sua visita neste mês a Cuba, para entrega do Prêmio Liberdade de Imprensa a Yoani Sánchez.  Ricardo descreveu-me a saga de Yoani para publicar seus textos.  A cubana incorre em custos exorbitantes para acesso à web e tira fotos dos manuscritos de seus textos, que por sua vez são copiadas para pen drives, de forma a minimizar o tempo on-line e despistar censores.

A partir do dia 25 de janeiro[2], acompanhei, pelo live feed da AlJazeera na internet, as manifestações dos revoltosos contra o ditador Mubarak no Egito.  No momento em que escrevo, dia 11 de fevereiro, Mubarak acaba de renunciar, e a praça Tahrir está em júbilo. Alguns dos principais líderes e heróis da revolução foram blogueiros (também chamados de netizens, net+citizens) e ativistas digitais (ou hacktivistas), que utilizam as redes sociais como Twitter e Facebook, muitas vezes anonimamente, tanto como fonte de ideias quanto para mobilização on-line e off-line.  E notou-se a ausência de partidos políticos, grupos religiosos e outras organizações e indivíduos conhecidos no alto comando do levante. Cristãos, muçulmanos e não religiosos protestaram unidos[3], e juntos limparam as ruas, policiaram a vizinhança, protegeram os museus e se abstiveram de portar mensagens com teor partidário ou religioso.

O que há em comum entre os recentes acontecimentos?  O que está acontecendo no mundo? Qual o papel da internet daqui para frente?

Cyberutópicos – que acreditam que a internet nos levará à liberdade e à democracia plenas — e cybercéticos — que duvidam que a internet tenha qualquer relação com a liberdade ou a política — vêm travando um debate há algum tempo.  Porém, os recentes acontecimentos parecem indicar que uma terceira visão, que chamarei de cyber-realista, parece ser a que melhor reflete os últimos acontecimentos.

A internet triunfou: os protestos on-line transcenderam os botões de “Curtir” e o “ReTweet”, e inspiraram o levante no mundo real.  Por outro lado, os governos mostraram a face negra do autoritarismo covarde, e não surpreendentemente fizeram uso da ilegalidade e de legislação sem legitimidade para conter os avanços dos dissidentes.  O governo egípcio, por exemplo, obrigou operadoras de telefonia como a Vodafone e outras a transmitir, desde o início dos protestos, mensagens em massa clamando os “homens honestos e fiéis (à pátria)” a confrontar “os traidores e criminosos” e a “proteger nosso povo e a honra“, participando de marchas pró-Mubarak[4].  Adicionalmente, para surpresa de alguns cyberutópicos, com uma simples tacada o governo egípcio ordenou que os quatro provedores de internet, assim como os de telefonia, interrompessem totalmente as conexões no dia 27 de janeiro, isolando o Egito do mundo por vários dias.  A insurreição continuou firme, no entanto, e teve êxito com a renúncia de Mubarak no dia 11 de fevereiro.

Mas o que podemos dizer sobre o futuro da censura e da liberdade no Brasil?  Devemos ser cybercéticos, ou cyber-realistas?  O que podemos esperar da internet?  Antes de dissecar a questão, no entanto, é importante traçar uma retrospectiva histórica da mídia e da censura.

O que a história tem a dizer

Uma das frases marcantes do economista austríaco Ludwig von Mises é “Somente ideias podem suplantar ideias“. Ideias, no entanto, não se disseminam no vácuo.  Durante milênios, as ideias disseminaram-se por métodos tradicionais, tais como boca a boca, papiros e pergaminhos.

Os governos, desde sempre, lutam contra a massificação da informação não controlada.  A batalha entre a censura e a livre expressão é milenar.  Sócrates foi condenado à morte por “corromper os jovens”, e os governantes, na antiga República Romana, instituíram censores[5] a partir do século V a.C., para regular os “bons costumes”.

A partir do século XV, o custo da disseminação de informações no Ocidente diminuiu substancialmente devido à tecnologia da prensa tipográfica e à criação do livro no formato moderno. Nessa época, como resposta às ideias de Lutero e outros, consideradas perigosas, a Igreja Católica baniu e queimou milhares de livros e processou autores por heresia, inclusive condenando vários à fogueira[6].

À medida que o número de jornais cresceu e a informação passou a ser mais bem difundida na Europa do século XVI e XVII, cresceu também a preocupação dos governantes quanto à sua sustentabilidade no poder.  Os impostos eram coletados presencialmente, sob ameaça de confisco dos bens remanescentes ou prisão, em caso de inadimplência.  E com o crescente número de guerras europeias, os governos aumentaram os impostos, provocando reações da população.  Os jornais serviram de meio para algumas críticas da população, assustando os governantes, que contavam com os jornais como veículos exclusivos de divulgação de propaganda governamental.

copyright, por exemplo, teve origem nos esforços dos governos europeus de controlar o conteúdo dos livros e jornais. Com o copyright foram estabelecidos “direitos de impressão de cópias”, que serviam como controles tanto para a produção quanto para a comercialização de livros, controles esses por meio dos quais o governo conseguia regular o conteúdo e obter espaço importante para a divulgação de propaganda.

Do outro lado do Atlântico, é possível que a Revolução Americana de 1776 não houvesse ocorrido não fosse a crucial participação da imprensa nas décadas que a antecederam. Nesse período, a circulação de jornais cresceu exponencialmente, beneficiada por uma modesta liberalização dos herméticos controles da coroa inglesa à imprensa, especialmente nas colônias[7].

O panfleto de Thomas Paine — “Common Sense” — dissecou argumentos para a libertação das colônias em uma época em que ainda não havia consenso sobre a independência da Inglaterra. Durante seu primeiro ano de circulação, 500.000 cópias foram vendidas, em numerosas 25 edições. Tal número é ainda mais impressionante se levarmos em conta a população total das colônias à época — apenas 2.400.000 habitantes, incluindo escravos e índios, crianças e idosos. “Common Sense” teve crucial importância para a consolidação das ideias de independência.

Neste século XXI, no entanto, o principal meio de disseminação de ideias — principalmente daquelas ideias antagônicas ao status quo e ao mainstream — tem sido a internet.  Durante o século XX, as ideias eram principalmente difundidas por livros, editoriais em jornais, revistas especializadas e alguns programas selecionados de televisão. De alguns anos para cá, porém, jornais passaram a ser principalmente provedores de serviços, e subsidiariamente provedores de notícias locais, de esportes e de política. Os jornais dotados de conteúdo editorial e análises profundas — veiculadores de ideias no segmento de impressos diários — estão perdendo espaço mundialmente.

Adicionalmente, inclusive no que tange a noticiário sem análise, a internet já supera os jornais. Nos Estados Unidos, desde 2008, a internet supera os jornais como fonte de notícias em geral, e hoje cerca de 41% dos americanos obtêm notícias pela internet, que é superada apenas da televisão, com 66% de participação[8].  E entre os homens com idade entre 18 e 49 anos, a internet já supera a televisão como fonte de notícias[9].

E ainda mais recentemente, os livros e jornais estão migrando para formato eletrônico, e são utilizados em dispositivos como o iPad, Kindle e celulares[10].

O rádio, a televisão e o negócio de livros possuem características muito diferentes das da internet. Nenhum deles viabiliza a divulgação de ideias pela massa de cidadãos comuns. Tampouco são desenhados para comunicação interpessoal em massa. A internet e as novas tecnologias, por outro lado, não só viabilizam a divulgação de ideias pelo cidadão comum[11] como também permitem que os netizens tirem partido de eventuais vulnerabilidades dos sistemas operados por governos ou empresas, agindo à margem do Estado de Direito, como o WikiLeaks tem demonstrado.

Em suma, neste atual cenário, as barreiras à entrada de novos provedores de ideias desapareceram, e a tecnologia permitiu a viabilização de inúmeros nichos formados por produtores e consumidores de ideias questionadoras do conformismo massificante comum à mídia de massa e ao mainstream[12].  Decerto, a internet não possui uma ideologia nativa, mas sua estrutura e tecnologia favorecem o dinamismo de pensatas, liberais ou não, que outrora não obtinham eco.

A internet pode ser controlada?

Há tempos circula um mito persistente: o de que “não se pode controlar a disseminação de informação na internet“. O mito sustenta que governos não são capazes de conter tal disseminação, principalmente por conta da tecnologia na qual a internet se baseia. Segundo o mito, não é necessário se preocupar, pois o governo já teria perdido essa guerra. Afirma-se que a informação relevante virá à tona, de alguma forma, pela característica da rede: descentralizada, sem governança central, e na qual a informação viaja por rotas alternativas e redundantes. Ainda que a maior parte da rede mundial fique inoperante, a informação é capaz de ser transmitida adequadamente entre as partes remanescentes. De fato, a internet foi originalmente concebida de forma a resistir a um ataque nuclear.

Certamente tendo o contexto acima em mente, nos primeiros anos da internet, John Gilmore, fundador da Electronic Frontier Foundation, declarou que “a internet interpreta a censura como dano, e a evita fazendo um desvio“.

Tal assertiva é apenas parcialmente verdadeira. Talvez seja mesmo impossível impedir que uma dada informação venha à tona na internet em algum momento.  Porém, o governo pode bloquear e fechar sites, filtrar e censurar informações, bloquear acessos por endereço IP[13], tornar ilegais certos modos de expressão, perseguir disseminadores de informação, entre outros meios.  Em suma, o governo pode tornar muito custosa a disseminação, alcançando na prática seu objetivo.

A Birmânia, por exemplo, possui um firewall[14] nacional que isola o país e torna a internet local uma mera intranet [15] de informações amigáveis ao governo. O acesso à internet (sem censura) pelos birmanos só é possível caso utilizem proxy servers, que permitem acessar indiretamente os sites bloqueados, via triangulação. Há uma interminável lista de sites bloqueados, que inclui, entre outros, aqueles de exilados, da mídia internacional, blogs e até sites de bolsas de estudo no exterior. É também proibido por lei ter contas de e-mail não fornecidas pelo governo. Eu não consegui acessar minhas contas, nem mesmo dos provedores brasileiros! Entretanto, percebi que na capital Yangon há praticamente um cybercafé a cada quarteirão. A população faz uso do anonimato propiciado pelos cybercafés para driblar a lei, sem dúvida com alguma ajuda dos próprios funcionários para utilização dos proxy servers. O governo há algum tempo obrigou a instalação de câmeras em todos os cybercafés, e também os obrigou a enviar ao governo um print screen, a cada cinco minutos, de todas as sessões dos usuários. Também são obrigados a fornecer os números de identidade, telefone e endereço dos usuários, se requisitados pela polícia. Assim prevê a legislação, chamada de Lei Eletrônica de 1996.

A limitada velocidade de conexão também é usada pelo governo da Birmânia como meio de conter a disseminação de ideias. A conexão padrão é de 512K, mas usualmente essa conexão é compartilhada por vários usuários. Eu despendi cerca de uma hora para fazer cinco pagamentos no site do meu banco.

E o governo não hesitou em derrubar a “internet” (na verdade derrubou a intranet local) e as linhas de telefone por longos períodos em maio e junho de 2009, enquanto durou o julgamento da heroína vencedora do Nobel da Paz e líder da oposição Aung San Suu Kyi[16], pela alegada violação dos termos de sua prisão domiciliar, por haver abrigado e alimentado o americano John Yettaw, que nadou até sua casa, sem ser convidado, furando o bloqueio policial. E o governo fez o mesmo durante a repressão aos protestos antigovernamentais de 2007 liderados pelos monges (a “Revolução do Açafrão”), que causou a morte de mais de 130 pessoas. Entre o dia 28 de setembro e 6 de outubro de 2007, a internet não funcionou e os cybercafés foram fechados, com a justificativa oficial de “manutenção”. Ainda hoje o mundo ignora os detalhes desse massacre hediondo contra mulheres, ativistas e monges que protestavam pacificamente nas ruas de Yangon, Mandalay e várias outras cidades.

Na Birmânia, o Facebook pode ser acessado parcialmente, na área de mural — já o acesso às áreas de mensagens privadas é bloqueado. Uma amiga, que incluiu um post no seu mural contendo a palavra “Birmânia”, recebeu uma mensagem de seu software antivírus indicando que havia sido instalado um software de keylogger no seu notebook. O keylogger típico registra todas as teclas pressionadas pelo usuário e envia esses dados para o instalador do software malicioso. Por sorte, minha amiga ficou ciente do problema por meio de seu antivírus e teve extrema cautela até sair do país.

Sim, permanece possível acessar e-mails e internet na Birmânia (ilegalmente), mas a que preço?  Ao preço de ser preso por anos a fio, caso descoberto?  Não, o exemplo da Birmânia mostra que governos podem censurar a internet na prática.[17]

Além disso, os governos podem efetivamente tirar proveito da internet para perseguir os ativistas, pesquisando seus hábitos, estudando suas declarações, identificando seus nomes, instalando softwares maliciosos.

Finalmente, os governos podem usar a internet para fazer propaganda, como no caso do governo Mubarak e no de vários países. Na China, por exemplo, há cerca de 250.000 comentaristas treinados e pagos para sorrateira e dissimuladamente defender o Partido Comunista em sites, redes sociais e chatrooms.[18]

A censura na internet no Brasil e no resto do mundo

Até agora foram analisados alguns exemplos considerados extremos, que, portanto, parecem ter pouca relação com a realidade brasileira. Essa interpretação é tentadora, mas enganosa.

Os países dotados de democracias consolidadas, como o Brasil, os Estados Unidos, países da Europa Ocidental, a Austrália, o Canadá e outros supostamente possuem razoáveis defesas às acometidas de seus governos contra disseminadores de ideias consideradas “dissidentes” ou “subversivas”.  Porém, os donos do poder usualmente aproveitam toda e qualquer oportunidade que possa servir de ensejo para o estabelecimento de amarras ao livre discurso de ideias, bem como de instrumentos legais para a perseguição de inimigos políticos. Tais janelas de oportunidade surgem em ocasiões de insegurança e de temores da população, reais ou imaginários, em relação a perigos externos, crises em geral, ocorrência de crimes hediondos (v.g., abuso sexual infantil) e outros.  E portanto, em nome de uma boa justificativa, e de posse de um discurso de intenções que quase nunca tem a ver com as reais intenções, implementam leis e regras que concederão ao governo o grau discricionário necessário para a viabilização da censura a posteriori.[19]

É possível conjecturar sobre a trajetória futura de atuação dos inimigos da liberdade de expressão nos países democráticos.  É natural esperar que:

a) utilizem uma justificativa “nobre” e “razoável”, e que busquem o caminho de menor esforço e menor risco, ou seja, que escolham aquelas matérias para as quais boa parte da população clama por uma atitude do governo;

b) iniciem sua atuação com medidas de escopo limitado e penalidades brandas;   mas caso ocasiões futuras abram brechas, é de se esperar que aumentem o escopo ou as penalidades;

c) que tentem cooptar e tornar corresponsáveis legais os intermediários da informação, como, por exemplo, os provedores de acesso (ISPs) e de hospedagem de sites, bem como os blogueiros;

d) que mencionem iniciativas implementadas por países com “credibilidade” como uma das justificativas para a implementação de iniciativa similar no país.

A perseguição ao anonimato

Aquilo que Thomas Jefferson chamou, na Declaração de Independência, de “longo trem de abusos e usurpações“, começa em geral — no que se refere à censura — pela proibição ao anonimato.  O anonimato protege o autor de eventuais perseguições, de chantagens e de ataques maliciosos de ordem pessoal, e mantém o foco nas ideias.  Os fundadores dos Estados Unidos sabiam da importância do anonimato, e o consagraram na Constituição.  Alexander Hamilton e James Madison escreveram os “Federalist Papers” sob o pseudônimo “Publius”, e vários outros fundadores utilizaram pseudônimos diversos de tempos em tempos.  Recentemente, em 1995, a Suprema Corte, declarou: “A proteção de discursos anônimos é vital para a democracia. Permitir que dissidentes protejam sua identidade os libera para expressar visões críticas defendidas por minorias. O anonimato é a proteção contra a tirania da maioria“.[20]

Adicionalmente, o anonimato on-line protege aqueles que desejam reportar abusos e ilegalidades cometidos pelo governo ou companhias, protege defensores de direitos humanos contra governos repressores e auxilia vítimas de violência doméstica a reconstruírem suas vidas em um ambiente ao qual seus violadores não cheguem.

No Egito, um dos maiores articuladores da revolução foi um anônimo conhecido como ElShaheed (mártir, em português), que controla uma página no Facebook denominada “We Are All Khaled Said”, que possui centenas de milhares de seguidores[21].

Já a Constituição do Brasil, por outro lado, proíbe expressamente o anonimato. Aproveitando a brecha gerada pela lei suprema, será apresentado neste mês de fevereiro de 2011 um projeto de lei de autoria do senador Magno Malta que prevê a ilegalidade de pseudônimos, também conhecidos como perfis falsos, na internet.  Magno Malta inspirou-se no exemplo da Califórnia, que, por sua vez, acaba de aprovar uma lei que prevê multa e prisão para quem utilizar perfil falso na internet.

No Brasil, todos os que utilizam a internet precisam se identificar junto ao seu provedor e incluir CPF e endereço, entre outros dados. E em São Paulo, a lei 12.228/06, promulgada por Geraldo Alckmin, obriga cybercafés a manterem um cadastro completo de todos os usuários, incluindo o equipamento utilizado e os horários detalhados[22], e prevê multa de até dez mil reais.

A justificativa dos inimigos do anonimato on-line é quase sempre a de que o anonimato “dificulta a identificação de criminosos virtuais”.

As determinações legais, no entanto, não inibem os chamados “criminosos virtuais”.  Como dizia meu pai, ministro Helio Beltrão, “a excessiva exigência burocrática só serve para dificultar a vida dos honestos sem intimidar os desonestos, que são especialistas em falsificar documentos”. 

A frase é válida para o mundo virtual de hoje. Para obter-se o anonimato on-line (com boas ou más intenções), não é necessário mais que alguns recursos tecnológicos criativos, ou documentos falsos (ou de “laranjas”) para registro junto ao seu provedor de acesso ou de hospedagem.  Desta forma, há proteção caso o governo resolva perseguir o anônimo, o que não ocorre com aqueles que seguem a legislação fielmente.

Não há dúvida: a proibição ao anonimato tem como resultado principal a inibição do discurso livre e desimpedido, por meio do constrangimento dos honestos.

Normas sobre o conteúdo

O próximo vagão do longo trem de abusos parece ser o estabelecimento de normas para reger o conteúdo “apropriado” ou “equitativo”.

A censura on-line é normalmente justificada como meio necessário para conter discursos ou imagens considerados “criminosos”, como, por exemplo, os discursos discriminatórios, a obscenidade, a “apologia” ao crime, o cyberbullying,[23] discursos subversivos à pátria, discursos incitando o ódio, desrespeito a crenças religiosas, discursos relacionados à segurança nacional.

Não há dúvida de que a maioria de nós considera inapropriados vários entre os casos listados acima, mas isso não quer dizer que eles devam ser considerados ilegais ou criminosos.  Um crime deve pressupor a existência de uma vítima, que tenha sofrido dano físico à sua pessoa ou propriedade (ou uma ameaça clara e presente de dano).  Um “crime sem vítima” não deveria ser considerado crime.

Parece-me um atentado ao bom senso considerar que conjuntos de palavras ou meras imagens caracterizem crimes por si só. Palavras e imagens podem conter evidência de crime, como, por exemplo, uma confissão de um assassinato ou uma fotografia de um estupro. No entanto, palavras ou imagens não constituem um crime em si próprias e, portanto, sua publicação não deveria ser restrita.

Como dito acima, uma vez estabelecidos os dispositivos legais, a tendência natural dos governos é usá-los de forma mais agressiva e abrangente do que o pretendido e declarado à época de sua promulgação. A tipificação dos supostos crimes virtuais listados acima é, por sua natureza, arbitrária e vaga. O que deve ser considerado “discriminatório”, por exemplo?  E o que poderia caracterizar uma “incitação de ódio”?  As lacunas dessas definições são em grande medida apropriadas pelos governos em geral tendo em vista seu próprio interesse.

No Canadá, uma comissão denominada Comissão Canadense de Direitos Humanos (CCDH) tem o poder de processar aquele que publicar na internet algo “que possa expor um indivíduo à aversão ou menosprezo“. A falaciosa teoria por trás dessa norma parece ser a de que palavras “danosas” necessariamente levam a atos danosos.  Dado o caráter vago e arbitrário da legislação, a comissão tem obtido cem por cento de condenação em seus processos. Cada vez mais a CCDH tem usado seu poder de censura como arma política, perseguindo cristãos e conservadores, entre outros.

Também no Canadá ganhou relevância o caso em que a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania de Alberta (CDHCA) — cujo nome parece ser pinçado ipsis literis do romance A Revolta de Atlas, de Ayn Rand — perseguiu o ex-editor-chefe Ezra Levant, da revista Western Standard, que escreveu uma longa matéria que incluiu algumas das charges de Maomé publicadas anteriormente por um jornal dinamarquês.  O processo durou três anos, e Ezra foi absolvido, mas sua defesa custou ao editor US$100.000 e seu emprego.  Ele atribui sua absolvição às imagens que ele fez de seu interrogatório e que tiveram 400.000 visualizações no YouTube em poucos dias.

O governo da Austrália, por sua vez, instituiu uma blacklist contendo 1.370 sites, que remete ao índice de livros banidos na Idade Média. Enquanto se aguarda a aprovação da lei, que prevê multa de US$11.000 por dia a quem acessar algum dos sites, os provedores de internet podem (devem?) aderir ao projeto-piloto voluntariamente. Em tese, não se conhecem os sites que oficialmente integram a lista, uma vez que são secretos. Um cidadão, portanto, poderia sofrer multa, sem se dar conta da contravenção cometida, ao acessar um site de uma lista secreta. A lista — que, segundo o governo, contém 674 sites relacionados à pornografia infantil e os demais relacionados a sexo ou temas adultos[24] — foi posteriormente revelada ao WikiLeaks, e constatou-se que contém sites de um dentista, de uma operação de aluguel de empilhadeiras na Holanda e de um canil, erros óbvios dos burocratas. A lista, que foi vendida à população como um esforço para “conter a pornografia infantil”, já está desvirtuada, e contém inclusive um site sobre opiniões sobre o aborto.

A Tailândia também instituiu uma blacklist secreta com o mesmo objetivo declarado de conter a pornografia infantil. Mas em apenas alguns meses já continha 1.200 sites banidos por criticar a família real. Vários outros países estão passando por trajetórias similares.

Outras formas de censura

Uma medida que levanta preocupação é o Acordo de Comércio Anti-Pirataria (chamado de ACTA).  Tal acordo está sendo costurado por países desenvolvidos com o objetivo de alcançar novos níveis de sanções em propriedade intelectual, com destaque para o âmbito da internet.  Um de seus objetivos é intensificar a coobrigação e a responsabilidade legal dos provedores de internet, para que estes ativamente identifiquem e filtrem o conteúdo das informações que circulem por sua rede.  Certamente isso levanta sérias questões não somente para a censura, mas também para os direitos à liberdade e à privacidade.

Similarmente, em diversos países, provedores de hospedagem ou blogueiros têm-se tornado co-responsáveis pelo conteúdo disponibilizado nas páginas hospedadas ou administradas por eles. Esse artifício centraliza a responsabilidade nas mãos de algumas poucas organizações e indivíduos visíveis, aos quais os governos podem facilmente identificar e ameaçar com punições.

Recentemente, o senador dos Estados Unidos Joe Lieberman contatou empresas como a Amazon para “solicitar” explicações de seu relacionamento com o site WikiLeaks.  Nos dias seguintes ao contato do senador, diversas empresas além da própria Amazon, como PayPal, eBay, Mastercard, Visa e outras declararam haver descontinuado seus serviços ao WikiLeaks após comunicação do Departamento de Estado indicando que tais serviços seriam “ilegais”.  Ainda que não possua amparo legal, o exemplo americano mostra que, quanto maior o poder do governo sobre o setor privado, maior potência possuem eventuais ameaças tácitas a organizações privadas.

Conclusão

Os acontecimentos recentes, como a revolução no Egito, tiraram quaisquer dúvidas sobre o vital papel que a disseminação livre e desimpedida de ideias, com o auxílio da tecnologia e da internet, pode ter na conquista de mais justiça e liberdade.

Deixaram claro, todavia, que os governos e os interesses especiais não ficarão passivos e lutarão ferozmente, ainda que de forma dissimulada, para conter pensamentos dissidentes.  Uma eventual sonolência da população significará a lenta e contínua perda dos benefícios que temos obtido com o fluxo livre de ideias e informação via internet.  Por outro lado, uma população assertiva e ciente de seu poder como indivíduos soberanos, a exemplo dos revolucionários egípcios, pode reverter as intrusões governamentais já estabelecidas e tomar conta de seus destinos.  

Por conta da liderança de tunisianos e egípcios, vários povos sedentos de liberdade e justiça consideram hoje factível e desejável o que antes julgavam impossível. Outros, no entanto, permanecem anestesiados e incrédulos quanto ao que se pode alcançar.  Espero que nós brasileiros sejamos parte do primeiro time e que façamos coro ao escritor Michael Kinsley, que afirmou: “os limites da livre expressão não podem ser determinados pelas suscetibilidades daqueles que não acreditam nela“.

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Notas

[1] A população da Birmânia é de cerca de 60 milhões de habitantes.

[2] O dia 25 de janeiro foi o primeiro dia das manifestações, e uma data escolhida a dedo pelos organizadores do protesto.  O dia 25 de janeiro recentemente havia sido decretado feriado por Mubarak, e denominado o Dia Nacional da Polícia.  A polícia foi o principal órgão de repressão do regime.

[3] Os cristãos fizeram cordão protetor dos muçulmanos nos momentos de preces.

[4] A Vodafone veio a público somente dez dias depois, e declarou que as mensagens foram veiculadas por ordem do governo.  Adicionalmente, declarou que estava obrigada a veicular, pois caso contrário cometeria uma ilegalidade.

[5] Também chamados de castigatores, os censores podiam, além de determinar se ações individuais estavam de acordo com os bons costumes (independente da lei), impor os seguintes atos: a) proibir alguém de permanecer solteiro, quando o casamento e a reprodução fossem do interesse do governo; b) proibir um determinado tipo de trabalho (teatro, por exemplo); c) punir aqueles que não cuidassem devidamente de sua plantação, entre outros.

[6] Foi instituída uma lista de livros proibidos a partir de então, que só foi formalmente abolida pela Igreja Católica em 1966, por determinação do Papa Paulo VI.

[7] Entre inúmeros controles, os editores de livros e jornais necessitavam de licenças de operação, que poderiam ser revogadas a qualquer tempo pelo governo, que podia inclusive sujeitar os proprietários à prisão.  O irmão mais velho de Benjamin Franklin, James, chegou a ficar preso por um mês.

[8] Fonte: Pew Research Center for the People & the Press.  A internet só é superada pela televisão, com 66%.  Jornais são fonte para 31%, e rádio, para 16%.  A soma supera 100% porque os entrevistados podem indicar mais de uma fonte.

[9] Nessa faixa etária, a internet é fonte de notícias para 56% dos entrevistados, e a televisão é fonte para 55%.

[10] Rupert Murdoch acaba de lançar um “jornal” – The Daily – disponível apenas no mundo virtual, via iPad.   O custo de uma edição é cerca de R$0,25.

[11] No segmento de livros, por exemplo, a tecnologia de print-on-demand viabilizou o chamado self-publishing, ou seja, as publicações independentes de baixo volume por autores desconhecidos.  O print-on-demand também viabiliza edições com baixas tiragens: todos os dezessete livros publicados até agora pelo Instituto Mises Brasil fazem uso dessa tecnologia.

[12] Os liberais e libertários formam um nicho que certamente se beneficia das barreiras à entrada declinantes. Pessoalmente, posso atestar que o Instituto Mises Brasil (e possivelmente outras organizações similares) não existiria com o escopo e o tamanho atuais não fosse a internet.

[13] IP é o endereço atribuído a cada aparelho (computador, celular, impressora, etc.) de uma rede que se comunica por protocolo internet, e que portanto é indispensável para navegar na internet.

[14] Firewall é um componente de uma rede que bloqueia acessos não autorizados, ao passo em que permite os acessos autorizados.

[15] A intranet birmana é jocosamente denominada de MWW, ou Myanmar Wide Web.

[16] Aung San Suu Kyi voltou ao país em 1988 para cuidar de sua mãe enferma, e chegou a tempo de presenciar e participar dos protestos pela democracia de agosto de 1988.  Ela foi presa sem julgamento em 1989, e permaneceu em prisão desde então, por praticamente todo o tempo, até sua libertação há alguns meses, em novembro de 2010.

[17] Em 2010, foram considerados “inimigos da internet”, pela organização Reporters Without Borders, os seguintes países: Birmânia, China, Cuba, Egito, Irã, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Síria, Tunísia, Turquemenistão e Uzbequistão.

[18] Tais “comentaristas” são conhecidos como o “Partido dos 50 Centavos”.  Procuram conduzir e influenciar eventuais discussões antigovernamentais ou “sensíveis” na direção da “linha do partido”. Recentemente, o Partido dos 50 Centavos tem atuado internacionalmente em vários sites de grande audiência fora da China. 

[19] A censura, claro, nunca é a justificativa declarada pelo governo para a implementação da lei.

[20] Não há nos Estados Unidos, no entanto, um direito líquido e certo à proteção de suas fontes jornalísticas em cortes federais. Há diversos jornalistas condenados e presos por se recusarem a revelar a fonte de documentos governamentais confidenciais ou sensíveis.  A tecnologia do WikiLeaks e outros atende a essa demanda por proteção das fontes.

[21] A autoria da página no Facebook tem sido atribuída ao executivo do Google, o egípcio Wael Ghonim.

[22] A lei exige nome completo, data de nascimento, endereço completo, telefone, número do RG, e proíbe o acesso em caso de dados incompletos ou não apresentação do RG.

[23] Vagamente definido como “o uso da internet ou outros aparatos para enviar textos ou imagens com a intenção de constranger ou prejudicar a imagem de terceiros”.

[24] Na rubrica “temas adultos”, já há centenas de sites de poker.


Helio Beltrão é o presidente do Instituto Mises Brasil.

Fonte: Artigo extraído do XV volume da série “Pensamentos Liberais”, livro lançado em 4 de abril de 2011 pelo IEE.

Uma grande dose de Adam Smith é exatamente o que a Argentina precisa

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Foto: Francisco Ghisletti/Unsplash

Em janeiro de 2007, o então recém reeleito Hugo Chávez enviou o que o The New York Times descreveu como uma “mensagem assustadora aos investidores estrangeiros”.

“Que seja nacionalizado”, disse o presidente venezuelano sobre a CANTV, o maior provedor de telecomunicações do país. “Tudo o que foi privatizado, que seja nacionalizado.”

Nos anos seguintes, Chávez cumpriria a sua palavra. O socialista reforçou o seu controle sobre a economia da Venezuela ao nacionalizar várias indústrias, incluindo a mineração de ouro, o setor bancário e os transportes.

Embora muitos ocidentais tenham aplaudido a medida, o movimento de nacionalização de Chávez seria desastroso.

O produto interno bruto da Venezuela, que era de US$ 316 bilhões em 2008, caiu para US$ 288 bilhões em 2016. Quando o sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, acelerou a expansão da oferta monetária da Venezuela para tentar estimular o crescimento econômico, o PIB caiu ainda mais e a hiperinflação rapidamente chegou. O banco central da Venezuela estima que, entre 2016 e 2019, a Venezuela sofreu uma inflação de pouco menos de 54 milhões por cento.

Em 2019, 96% dos venezuelanos viviam na pobreza e 79% viviam na pobreza extrema, provocando um êxodo em massa de cerca de 4,6 milhões de venezuelanos.

Na Argentina hoje, algo muito diferente está acontecendo.

A Argentina, a segunda maior economia da América do Sul, atrás apenas do Brasil, viu a sua taxa de inflação anual atingir 161% em novembro, uma consequência da expansão maciça da sua oferta monetária.

Mas os argentinos escolheram um caminho diferente.

Em novembro, o país elegeu o libertário Javier Milei como seu novo presidente. E enquanto Hugo Chávez disse “tudo o que foi privatizado, que seja nacionalizado”, Milei está essencialmente dizendo o contrário: tudo o que foi nacionalizado, que seja privatizado.

Milei não parou por aí. Em um recente anúncio televisivo, ele disse que iria “revogar as regras que impedem a privatização de empresas estatais”.

Milei começou cortando pela metade o número de ministérios federais na Argentina, reduzindo-os de 18 para nove. Isto foi seguido por uma enorme desvalorização cambial.

Estas palavras foram apoiadas por um decreto com 300 medidas destinadas a desregulamentar os serviços de internet, eliminar vários controles governamentais de preços, revogar leis que desencorajam o investimento de capital estrangeiro, abolir o observatório de preços do Ministério da Economia e “preparar todas as empresas estatais para serem privatizadas”.

Para completar, Milei apresentou um projeto de lei de 351 páginas que visa o estado regulador da Argentina e concederia poderes de emergência a Milei “até 31 de dezembro de 2025”.

Dar poderes de emergência a qualquer presidente não é pouca coisa, mesmo durante uma crise genuína. Embora o projeto de lei de Milei se destine a restringir o poder do Estado e não a expandi-lo – um contraste notável com o paradigma típico de resposta a crises –, a história e os acontecimentos recentes em El Salvador mostram como os poderes de emergência podem ser abusados e usados para violar os direitos humanos e a liberdade.

Não está claro se Milei conseguirá cumprir toda a sua agenda, mas há motivos para otimismo.

A sua impressionante eleição é em si uma prova de que os argentinos estão ávidos por mudanças. Ele já demonstrou um pragmatismo impressionante aliado ao seu inegável talento político, cercando-se de uma série de talentosos especialistas em política. Isto inclui Federico Sturzenegger, um antigo economista-chefe do banco central da Argentina que há duas décadas conseguiu recuperar o falido Banco da Cidade de Buenos Aires. As reformas de Sturzenegger foram tão eficazes que se tornaram um estudo de caso em Harvard.

O sucesso não é de forma alguma certo, é claro.

A recuperação de décadas de peronismo – uma mistura de socialismo, nacionalismo e fascismo, que dominou o sistema político argentino durante anos – não acontecerá da noite para o dia. E a classe política da Argentina passou os últimos anos piorando uma situação que já era ruim.

Ainda assim, o grande economista Adam Smith observou certa vez que a chave para a prosperidade econômica é surpreendentemente simples.

“Pouco mais é necessário para levar um Estado ao mais alto grau de opulência a partir da mais baixa barbárie, mas paz, impostos baixos e uma administração tolerável da justiça”, disse o autor de A Riqueza das Nações.

Milei sabe disso. Ele não apenas leu Smith (além de economistas da Escola Austríaca, como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises). Em um perfil de 2017, ele se autodenominou “herdeiro de Adam Smith”.

Uma forte dose de Adam Smith é precisamente o que a Argentina precisa, e Milei diagnosticou corretamente a aflição da outrora próspera economia da Argentina.

“O estado não cria riqueza; ele apenas a destrói”, disse Milei em uma entrevista amplamente vista em 2023.

A própria trajetória econômica dos Estados Unidos é mais do que alarmante, razão pela qual os americanos deveriam prestar atenção aos acontecimentos na América do Sul.

Nas próximas décadas, à medida que a dívida federal continua aumentando, os pagamentos de juros sobre a dívida federal crescem como uma bola de neve e o poder de compra do dólar diminui ainda mais, é provável que enfrentemos uma escolha semelhante à dos venezuelanos e argentinos.

Escolheremos Chávez ou Milei?


Jon Miltimore é editor-chefe do website Intellectual Takeout.

Artigo originalmente publicado em FEE.org

Nota: as visões expressas no artigo não são necessariamente aquelas do Instituto O Pacificador.

O que acontece quando as empresas atendem aos planejadores em vez dos consumidores

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Foto gerada por AI

Recentemente, a Ford anunciou que estava reduzindo pela metade a meta de produção de seu veículo elétrico mais popular, a picape F-150 Lightning.

Bloomberg News relata que a principal fábrica da empresa em Dearborn, Michigan, pretende agora produzir 1.600 veículos por semana em 2024, abaixo dos 3.200 em 2023.

A mudança ocorre poucos meses depois que a Ford anunciou que estava reduzindo os preços do Lightning em US$ 10.000. E, embora a empresa tenha citado “custos mais baixos das matérias-primas das baterias e trabalho contínuo no dimensionamento da produção e dos custos” para o seu corte de preços, o fato é que está se tornando dolorosamente óbvio que a baixa procura de veículos elétricos (EVs) foi o principal catalisador.

Durante o último verão americano, inúmeras notícias mostraram que os fabricantes tinham sobrestimado enormemente a procura de veículos elétricos no mercado, evidenciado por um enorme excesso em lotes de concessionárias.

Muitos especularam que o montante excedente resultou da restrição da oferta monetária após uma série de aumentos das taxas de juros do Federal Reserve. O problema com esta hipótese é que o excesso de EVs era elevado mesmo em comparação com o de carros movidos a gasolina.

Conforme relatado pela Axios na época, o fornecimento de EVs para 92 dias nos lotes das concessionárias era “quase o dobro da média do setor”.

Investimento maciço de capital é um erro?

Nem se precisa dizer que este não era o plano.

Após um ano recorde de vendas de veículos elétricos em 2021, muitos fabricantes de automóveis apostaram alto no futuro dos veículos elétricos. A Ford, por exemplo, anunciou em 2022 que aumentaria os gastos com veículos elétricos para 50 bilhões de dólares até 2026 – um aumento de mais de 50% – e criaria uma divisão de veículos elétricos totalmente nova.

Em retrospectiva, a decisão da Ford parece absurda, tendo em conta a queda na procura de veículos eléctricos. Mas, para ser justo, as coisas pareciam muito diferentes no início de 2022. Os EVs registravam um segundo ano consecutivo de recorde de vendas e poucos analistas previam que essa tendência perderia força em 2023.

Pelo contrário, em abril, a Agência Internacional de Energia divulgou um relatório que projetava um aumento de 35% nas vendas globais de veículos elétricos em 2023, citando a forte procura do mercado “na China, na Europa e nos Estados Unidos”.

Além disso, a Ford poderia contar com incentivos fiscais governamentais para impulsionar a procura nos EUA, onde os consumidores são elegíveis para receber até 7.500 dólares em créditos fiscais na compra de um novo EV.

Apesar do incentivo fiscal, os consumidores não estão adotando EVs tão rapidamente como os analistas projetaram, prevendo-se que os EV representem apenas 9% das vendas de veículos leves em 2023, de acordo com o EV Hub, um projeto de política pública da Atlas que monitoriza vendas de EVs.

Os trade-offs dos EVs

A notícia de que o mercado de EVs está em dificuldades provavelmente emociona algumas pessoas e irrita outras.

Em certo sentido, isso é estranho. Por que os consumidores torceriam pelo sucesso ou fracasso de um produto? Mas faz mais sentido quando percebemos que os veículos elétricos se tornaram, até certo ponto, um símbolo político, defendido por aqueles que os veem como um produto virtuoso que pode proteger a humanidade das alterações climáticas e contestado por muitos que se ressentem do seu status fiscal favorecido.

Deixando a política de lado, não há nada de intrinsecamente errado com os veículos elétricos. Muitos EVs são fantásticos, embora todos tenham vantagens e desvantagens, como qualquer produto.

Por exemplo, o Tesla Model Y Long Range tem aceleração incrível (vai de zero a 100 em aproximadamente 4,8 segundos) e velocidade máxima impressionante (217 mph). Tem uma autonomia sólida (530 quilômetros), acomoda até sete pessoas e pode até dirigir sozinho.

Os contras? Bem, o preço de um Modelo Y começa em US$ 48.000. Esse não é, de longe, o veículo mais caro da Tesla – seu Modelo X Plaid começa com o dobro disso –, mas não é barato, e o preço só aumenta com mais acompanhamentos.

A inacessibilidade não é a única desvantagem dos EVs (mais sobre isso mais tarde), mas é uma das principais razões pelas quais os americanos têm demorado a adotar EVs, mostram muitas evidências.

“Observamos os preços dos veículos elétricos durante 13 anos nos EUA e, em dólares ajustados pela inflação, o preço médio de um EV está subindo, e não caindo”, disse Ashley Nunes, pesquisadora associada sênior da Harvard Law School, em uma reportagem da BBC em novembro. “Dependendo do dia, uma diferença entre US$ 15.000 e US$ 20.000… é muito fácil ver qual opção [os consumidores] irão selecionar”.

Existem outros trade-offs, é claro. Não é apenas que os EVs tendem a ter um autonomia muito menor do que os carros movidos a gasolina. Há também a questão de onde se carregará o veículo quando ele estiver com pouca energia.

Este é um grande obstáculo para os americanos. Um estudo realizado pelo Energy Policy Institute da Universidade de Chicago e pelo Associated Press-NORC Center for Public Affairs Research descobriu que 77% dos entrevistados citaram a falta de estações de carregamento como motivo para não comprar um EV, perdendo apenas para o alto custo (83%).

Esta preocupação é justificada.

Uma análise da McKinsey & Company mostra que os EUA precisariam expandir a sua infraestrutura de carregamento cerca de 20 vezes para ter estações de carregamento suficientes para cumprir a meta do governo federal de fazer com que os EVs representem 15% de todos os veículos até 2030.

Incompetência grosseira?

Alguns poderão considerar a relutância dos consumidores norte-americanos em adotar veículos eléctricos mais rapidamente como uma falha no sistema econômico americano, mas na verdade é um ponto forte.

A economia, acima de tudo, é o estudo de como os recursos escassos são alocados. Dado que as economias são infinitamente complexas, os recursos são atribuídos de forma mais eficiente através das forças de mercado, que envolvem compradores e vendedores que possuem conhecimento local tomando decisões racionais (como não comprar um EV se não tiver condições para comprá-lo ou abastecê-lo de forma confiável).

Uma rápida olhada na história e uma compreensão básica da economia mostram que o planejamento central nunca poderá igualar a eficiência dos mercados, e esta tese é apoiada pelos esforços desajeitados do governo federal para coagir os americanos a utilizarem EVs.

Apesar de o governo federal renunciar a centenas de milhões de dólares todos os anos devido a créditos fiscais para novas compras de veículos eléctricos, isso demonstrou uma grande incompetência no fornecimento da infraestrutura necessária para apoiar estes veículos.

A Lei de Investimentos em Infraestrutura e Empregos do presidente Biden, aprovada em 2021, alocou US$ 7,5 bilhões em financiamento para infraestrutura de carregamento. Seu objetivo era construir 500.000 estações públicas de carregamento de veículos elétricos nos EUA.

Mas, como informou o Politico no início de dezembro, nem uma única estação de carregamento foi construída com esta iniciativa. (Zero!) Embora muitos estados tenham recebido contratos, apenas dois – Pensilvânia e Ohio – iniciaram as obras.

Além disso, o governo federal está ativamente impedindo a construção de estações de carregamento talvez no local mais óbvio e conveniente: paradas para descanso.

A desvantagem ambiental dos veículos elétricos

Alguns poderão argumentar que esta ineficiência é lamentável, mas mesmo assim necessária, uma vez que os seres humanos devem ser afastados dos combustíveis fósseis para salvar a humanidade das alterações climáticas, mas este argumento falha por várias razões.

Para começar, os EVs têm a sua própria pegada de carbono, e esta não é pequena. Na verdade, os EVs requerem muito mais CO2 para serem produzidos do que os carros movidos a gasolina.

Há alguns anos, pesquisadores alemães estimaram que seriam necessárias 13,6 toneladas de CO2 para produzir uma única bateria Tesla. Por sua vez, os executivos da Volvo admitiram que o seu popular C40 Recharge deve percorrer cerca de 112.600 quilômetros antes que o seu impacto de carbono seja inferior ao da sua contraparte movida a gasolina (a menos que funcione com eletricidade produzida exclusivamente a partir de energia eólica, o que não vai acontecer).

A elevada pegada de carbono dos EVs pode ser compensada se os veículos circularem durante tempo suficiente, porque geram menos CO2 durante o seu ciclo de vida. Mas não importa como se analisam os dados, é evidente que os EVs não são a panaceia verde que muitos passaram a acreditar. O Wall Street Journal concluiu que uma mudança completa de carros movidos a gasolina para veículos elétricos reduziria as emissões globais de CO2 em cerca de 0,18%.

Além disso, os EVs apresentam outros trade-offs ambientais que raramente recebem atenção, tais como as grandes quantidades de cobre, lítio, cobalto e outros minerais que requerem mineração a céu aberto e outros processos intensivos em terra (e mão-de-obra) para serem desenterrados.

O verdadeiro “capitão” do navio

O resultado final é que o mercado de veículos elétricos dos EUA está uma bagunça, algo que muitos analistas dizem que vai piorar antes de melhorar. E fabricantes de automóveis como a Ford, que apostam alto no futuro dos veículos elétricos, provavelmente enfrentam dificuldades, pelo menos no curto prazo.

Não precisava ser assim.

A tecnologia dos EVs – especialmente motores e baterias – está melhorando rapidamente, e um mercado para veículos elétricos provavelmente teria surgido mesmo sem as muitas intrusões federais que adicionaram confusão ao mercado.

A decisão da Ford é um lembrete importante de quem é o verdadeiro chefe numa economia de livre mercado. Não é a Ford. E certamente não é o governo federal.

“Os capitalistas, os empresários e os agricultores são fundamentais na condução dos assuntos econômicos. Eles estão no comando e dirigem o navio. Mas eles não são livres para moldar o seu curso”, explicou o famoso economista Ludwig von Mises na sua obra seminal Burocracia. “Eles não são supremos, são apenas timoneiros, obrigados a obedecer incondicionalmente às ordens do capitão. O capitão é o consumidor”.

A Ford faria bem em começar a ouvir os verdadeiros capitães da economia e prestar menos atenção às promessas dos políticos e burocratas que tentam guiar o navio.


Jonathan Miltimore é editor-chefe da FEE.org e redator sênior da AIER. Seus textos foram tema de artigos na revista TIME, The Wall Street Journal, CNN, Forbes, Fox News e Star Tribune.

Fonte: AIER – American Institute for Economic Research

O que o Estado é e o que o Estado não é

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Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

O que o Estado não É

O estado é quase universalmente considerado uma instituição de serviço social. Alguns teóricos veneram o estado como sendo a apoteose da sociedade; outros consideram-no uma organização afável, embora muitas vezes ineficiente, que tem o intuito de alcançar objetivos sociais. Porém quase todos o consideram um meio necessário para se atingir os objetivos da humanidade, um meio a ser usado contra o “setor privado” e que frequentemente ganha essa disputa pelos recursos. Com o advento da democracia, a identificação do estado com a sociedade foi redobrada ao ponto de ser comum ouvir a vocalização de sentimentos que violam quase todos os princípios da razão e do senso comum, tais como: “nós somos o governo” ou “nós somos o estado”.

O termo coletivo útil “nós” permite lançar uma camuflagem ideológica sobre a realidade da vida política.  Se “nós somos o estado”, então qualquer coisa que o estado faça a um indivíduo é não somente justo e não tirânico, como também “voluntário” da parte do respectivo indivíduo.  Se o estado incorre numa dívida pública que tem de ser paga através da cobrança de impostos sobre um grupo para benefício de outro, a realidade deste fardo é obscurecida pela afirmação de que “devemos a nós mesmos” (ou “a nossa dívida tem de ser paga”); se o estado recruta um homem, ou o põe na prisão por opinião dissidente, então ele está “fazendo isso a si mesmo” — e, como tal, não ocorreu nada de lamentável.

Nesta mesma linha de raciocínio, os judeus assassinados pelo governo nazista não foram mortos; pelo contrário, devem ter “cometido suicídio”, uma vez que eles eram o governo (que foi eleito democraticamente) e, como tal, qualquer coisa que o governo lhes tenha feito foi voluntário da sua parte.  Não seria necessário insistir mais neste ponto; no entanto, a esmagadora maioria das pessoas aceita esta ideia enganosa em maior ou menor grau.

Devemos, portanto, enfatizar a ideia de que “nós” não somos o estado; o governo não somos “nós”.  O estado não “representa” de nenhuma forma concreta a maioria das pessoas1.  Mas, mesmo que o fizesse, mesmo que 70% das pessoas decidissem assassinar os restantes 30%, isso ainda assim seria um homicídio em massa e não um suicídio voluntário por parte da minoria chacinada2.  Não se pode permitir que nenhuma metáfora organicista, nenhuma banalidade irrelevante, obscureça este fato essencial.

Se, então, o estado não somos “nós”, se ele não é a “família humana” se reunindo para decidir sobre os problemas mútuos, se ele não é uma reunião fraterna ou clube social, o que é afinal? Em poucas palavras, o estado é a organização social que visa a manter o monopólio do uso da força e da violência em uma determinada área territorial; especificamente, é a única organização da sociedade que obtém a sua receita não pela contribuição voluntária ou pelo pagamento de serviços fornecidos mas sim por meio da coerção.

Enquanto os outros indivíduos ou instituições obtêm o seu rendimento por meio da produção de bens e serviços e da venda voluntária e pacífica desses bens e serviços ao próximo, o estado obtém o seu rendimento através do uso da coerção; isto é, pelo uso e pela ameaça de prisão e pelo uso das armas3.  Depois de usar a força e a violência para obter a sua receita, o estado geralmente passa a regular e a ditar as outras ações dos seus súditos. Poderíamos pensar que a simples observação de todos os estados ao longo da história e de todo o globo seria prova suficiente para esta afirmação; mas o miasma do mito incrustou-se na atividade do estado há tanto tempo, que se torna necessária uma elaboração.

O que o Estado É

O ser humano nasce indefeso e, como tal, precisa utilizar a sua mente para aprender a como obter os recursos que a natureza lhe fornece e a como transformá-los (por exemplo, através do investimento em “capital”) em objeto e em locais de modo que possam ser utilizados para a satisfação das suas necessidades e para a melhoria do seu padrão de vida. A única forma por meio da qual o ser humano pode fazer isto é através do uso da sua mente e da sua energia para transformar os recursos (“produção”) e da troca destes produtos por produtos criados pelos outros.  O ser humano descobriu que, por meio do processo de troca mútua e voluntária (comércio), a produtividade — e, logo, o padrão de vida de todos os participantes desta troca — pode aumentar significativamente. Portanto, o único caminho “natural” para o ser humano sobreviver e alcançar a prosperidade é utilizando sua mente e energia para se envolver no processo de produção-e-troca.  Ele realiza isto, primeiro, encontrando recursos naturais, segundo, transformando-os (“misturando seu trabalho a eles”, tal como disse John Locke), fazendo deles a sua propriedade individual, e depois trocando esta propriedade pela propriedade de outros que foi obtida de forma semelhante.

O caminho social ditado pelas exigências da natureza humana, portanto, é o caminho dos “direitos de propriedade” e do “livre mercado” de doações ou trocas de tais direitos. Ao longo deste caminho, o ser humano aprendeu a evitar os métodos “selvagens” da luta pelos recursos escassos — de forma que A pudesse apenas adquiri-los à custa de B —, e, ao invés disso, aprendeu a multiplicar imensamente esses recursos por meio do processo harmonioso e pacífico da produção e troca.

O grande sociólogo alemão Franz Oppenheimer apontou para o fato de que existem duas formas mutuamente exclusivas de adquirir riqueza: a primeira, a forma referida acima, de produção e troca, ele chamou de “meio econômico”. A outra forma é mais simples, na medida em que não requer produtividade; é a forma em que se confisca os bens e serviços do outro através do uso da força e da violência. É o método do confisco unilateral, do roubo da propriedade dos outros. A este método Oppenheimer rotulou de “o meio político” de aquisição de riqueza.  Deve estar claro que o uso pacífico da razão e da energia na produção é o caminho “natural” para o homem: são os meios para a sua sobrevivência e prosperidade nesta terra.  Deve estar igualmente claro que o meio coercivo, explorador, é contrário à lei natural; é parasítico, pois em vez de adicionar à produção, apenas subtrai.

O “meio político” desvia a produção para um indivíduo — ou grupo de indivíduos — parasita e destrutivo; e este desvio não só subtrai da quantidade produzida como também reduz o incentivo do produtor para produzir além de sua própria subsistência.  No longo prazo, o ladrão destrói a sua própria subsistência ao diminuir ou eliminar a fonte do seu próprio suprimento.  Mas não só isso: mesmo no curto prazo, o predador age contrariamente à sua natureza como ser humano.

Estamos agora em uma posição que nos permite responder mais satisfatoriamente à questão: o que é o estado? O estado, nas palavras de Oppenheimer, é “a organização dos meios políticos”; é a sistematização do processo predatório sobre um determinado território4. Pois o crime é, no máximo, esporádico e incerto; já o parasitismo é efêmero e a coerciva ligação parasítica pode ser cortada a qualquer momento por meio da resistência das vítimas.  O estado, no entanto, providencia um meio legal, ordeiro e sistemático para a depredação da propriedade privada; ele torna certa, segura e relativamente “pacífica” a vida da casta parasita na sociedade5.

Dado que a produção tem sempre de preceder qualquer depredação, conclui-se que o livre mercado é anterior ao estado.  O estado nunca foi criado por um “contrato social”; ele sempre nasceu da conquista e da exploração.  O paradigma clássico é aquele de uma tribo conquistadora que resolveu fazer uma pausa no seu método — testado e aprovado pelo tempo — de pilhagem e assassinato das tribos conquistadas ao perceber que a duração do saque seria mais longa e segura — e a situação mais agradável — se ela permitisse que a tribo conquistada continuasse vivendo e produzindo, com a única condição de que os conquistadores agora assumiriam a condição de governantes, exigindo um tributo anual constante6.

Um dos métodos de nascimento de um estado pode ser ilustrado como se segue: nas colinas da “Ruritânia do Sul”, um grupo de bandidos organiza-se de modo a obter o controle físico de um determinado território.

Cumprida a missão, o chefe dos bandidos autoproclama-se “Rei do estado soberano e independente da Ruritânia do Sul”. E se ele e os seus homens tiverem a força para manter este domínio durante o tempo suficiente, pasmem!, um novo estado acabou de se juntar à “família das nações”, e aqueles que antes eram meros líderes de bandidos acabaram se transformando na nobreza legítima do reino.

Notas:

1. Não é o objetivo deste trabalho desenvolver os inúmeros problemas e enganos da “democracia”. É o suficiente dizer que o verdadeiro agente de um indivíduo, ou “representante”, está sempre sujeito às ordens desse mesmo indivíduo, pode ser demitido a qualquer momento e não pode agir em contrário aos interesses ou desejos do seu chefe. Obviamente, o “representante” numa democracia nunca poderá satisfazer estas funções de agente, as únicas conformes com uma sociedade livre.

2. Os sociais-democratas respondem muitas vezes que a democracia — a escolha majoritária dos governantes — implica logicamente que a maioria tem de deixar determinado grau de liberdade à minoria, pois a minoria pode um dia tornar-se a maioria. Aparte de outras falhas, este argumento obviamente não se mantém onde a minoria não se pode tornar a maioria, por exemplo, quando a minoria pertence a um grupo étnico ou racial diferente da maioria.

3 Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy (Capitalismo, Socialismo e Democracia) (New York: Harper and Bros., 1942), p. 198.

A fricção e o antagonismo entre a esfera privada e a pública foi intensificada desde o princípio pelo fato de que. o estado tem vivido do rendimento que tem sido produzido na esfera privada com propósitos privados e que tem que ser desviado desses propósitos através da força política. A teoria que interpreta os impostos em analogia à filiação de um clube ou à aquisição do serviço de, digamos, um médico só prova quão removida se encontra esta parte das ciências sociais dos hábitos mentais científicos.

Ver também Murray N. Rothbard, “The Fallacy of the ‘Public Sector’”, New Individualist Review (Summer, 1961): 3ff.

4 Franz Oppenheimer, The State (New York: Vanguard Press, 1926) p. 24-27:

Existem duas formas fundamentalmente opostas através das quais o homem, em necessidade, é impelido a obter os meios necessários para a satisfação dos seus desejos. São elas o trabalho e o furto, o próprio trabalho e a apropriação forçosa do trabalho dos outros. Eu proponho, na discussão que se segue, chamar ao trabalho próprio e à equivalente troca do trabalho próprio pelo trabalho dos outros, de “meio econômico” para a satisfação das necessidades enquanto a apropriação unilateral do trabalho dos outros será chamada de “meio político”. O estado é a organização dos meios políticos. Como tal, nenhum estado pode existir enquanto os meios econômicos não criaram um definido número de objetos para a satisfação das necessidades, objetos que são passíveis de ser levados ou apropriados por roubo bélico.

5 Albert Jay Nock escreve de forma clara que:

o Estado reivindica e exercita o monopólio do crime. Ele proíbe o homicídio privado mas ele mesmo organiza o assassínio numa escala colossal. Ele pune o roubo privado mas ele próprio deita as suas mãos sem escrúpulos a tudo o que ele quer, seja propriedade dos seus cidadãos seja de estrangeiros.

Nock, On Doing the Right Thing, and Other Essays (New York: Harper and Bros., 1929), p.143

6 Oppenheimer, The State, p.15:

O que é, então, o Estado como conceito sociológico? O Estado, na sua verdadeira gênese, é uma instituição social forçada por um grupo de homens vitoriosos sobre um grupo vencido, com o propósito singular de domínio do grupo vencido pelo grupo de homens que os venceram, assegurando-se contra a revolta interna e de ataques externos. Teleologicamente, este domínio não possuía qualquer outro propósito senão o da exploração econômica dos vencidos pelos vencedores.

E de Jouvenel escreveu: “o estado é na sua essência o resultado dos sucessos alcançados por um grupo de bandidos que se impôs a uma sociedade gentil e pacífica”. Bertrand de Jouvenel, On Power (New York: Viking Press, 1949) p.100-101.


Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

Fonte: Extraído dos dois primeiros capítulos do livro A Anatomia do Estado, de Murray N. Rothbard.